O que é um Hino Órfico?


Os chamados Hinos Órficos são um conjunto de 87 poemas dedicados às mais diversas divindades gregas, dentre as quais algumas não têm evidência de culto senão no contexto do culto de mistério ao qual os hinos estariam associado, isto é, os chamados Mistérios Órficos, cuja doutrina essencial é a ideia da metempsicose, o que significa uma crença na transcendência da alma por meio de gerações de reencarnação a fim de nos libertarmos de nossa matéria tirânica até alcançarmos nossa essência dionisíaca. Explico:

Um dos mitos basilares dos Mistérios Órficos diz que, quando nasceu, Dioniso foi alvo da fúria de Hera, que planejou uma armadilha para o menino atraindo-o com brinquedos para perto do titãs, que o teriam despedaçado e devorado, sobrando, assim, apenas o coração do menino, que foi resgatado por Hermes ou Atena e levado até Zeus, que o costura em sua coxa e depois dá luz ao menino renascido. Furioso com os titãs, o Pai dos Homens e Deuses os fulmina, e das suas cinzas são moldados os seres humanos, nos quais, no entanto, restaria uma parte dionisíaca. Dessa forma, a ideia da metempsicose compreende que, por meio de um certo modo de vida, o ser humano é capaz de transcender sua natureza titânica e alcançar sua centelha dionisíaca.

Os dados para essa questão são amplos e compreendem uma série de argumentos que, dado o nosso objetivo aqui, que é apresentar Afrodite, não convém abordar. Contudo, convém ainda falar a respeito de duas questões antes de passarmos a Deusa: a datação e autoria dos poemas e seus aspectos mais formais.

Embora atribuídos ao poeta Orfeu (personagem tão lendário quanto Homero), que seria filho de uma das nove musas, geralmente identificada como Calíope ou Polímnia, com Eagro, rei trácio, ou com Apolo, os poemas teriam, na realidade, sido compostos por um poeta anônimo que emula, isto é, adota a persona órfica na elocução dos hinos. Sua composição dataria, então, não do período arcaico ou clássico, quando se registra a primeira menção do nome de Orfeu, mas, dada a sua linguagem e vocabulário, do século II ou III E.C., conforme mais aceito atualmente.

Estruturalmente falando, vimos aqui que hinos geralmente tem uma divisão tipicamente tripla: a invocação, o argumento e a petição.  Esse, contudo, não é o caso dos hinos órficos: sua composição é marcada por uma longa invocação que enumera diversos epítetos e atributos da divindade diretamente seguida pelo pedido. Se isso é tradicional no gênero hínico, que sofre variação ou nos hinos homéricos ou nos hinos órficos, ainda é uma questão em debate na qual não me deterei, bastando assinalar essa diferença.

No que tange Afrodite, então, o hino que a ela é dedicado sintetiza os diversos aspectos da imagem da deusa que são desenvolvidos ao longo da tradição poética, ou seja, associam-se a ela o reino celeste, os sorrisos, a fertilidade/reprodução, a persuasão e ardilosidade, e sobretudo sua imperiosidade. Mas um dos aspectos mais gritantes desse hino é a força com que sua relação com oriente próximo é referida: um dos primeiros santuários mencionados no poema situa-se na Síria (v.17), onde a deusa cultuada, na verdade, era Astarte, culto do qual, por meio de Chipre, se originou o culto a Afrodite. Outro santuário mencionado é justamente o cipriota, já conhecido desde a tradição épica arcaica (Homero e Hesíodo). Além desses dois santuários, o poeta do hino ainda refere-se ao Egito, cuja referência Ordep [1] propõe ser uma relação entre Afrodite e Ísis: de fato, novamente no contexto cipriota, diversas deusas do oriente próximo e do continente Africano tiveram culto na ilha de Afrodite, dentre elas também Hathor, o que acabou por conferir a Afrodite grega, por meio dos sincretismos locais, atributos de divindades diversas. Por fim, a evocação de Afrodite relacionada a Adonis a relaciona, mais uma vez, com o oriente. Como vimos nos posts sobre os amantes de Afrodite, Adonis é um amante oriental da deusa, cujo culto, embora tenha sido absorvido pela Grécia, não é autóctone.

Um outro epíteto evocado no poema (v.6) é “paredra de Baco”, isto é, de Dioniso: a relação entre Afrodite e Dioniso é a um mesmo tempo pouco explanada, mas também muito evidente; nas Bacantes de Euripides, diz-se que não há Citeréia sem Dioniso: em suma, a relação parece remeter ao domínio do prazer e do despreendimento, quer dizer, sem a presença da embriaguez e da libertação dos sentidos dionisíacos não é possível experienciar o prazer e o amor (em seu sentido mais amplo e desidealizado) provenientes de Afrodite.

Já em outros hinos, a figura de Afrodite é fortemente associada com a Noite, sendo esse, inclusive, um de seus outros nomes, sobretudo no Hino Órfico 3:

Eu cantarei a Noite, mãe dos deuses e dos homens
[Noite de tudo origem, que Cípria também chamamos].

(Hino Órfico 3, a Noite, vv.1-2)

Embora o verso que a nomeia de Cípria seja considerado espúrio pelos editores (daí o uso dos colchetes), a associação é perfeitamente plausível: não só Afrodite nasce num contexto noturno, quando Urano ansiando de desejo por Gaia é castrado por Cronos, como os próprios domínios de Afrodite preveem o contexto noturno, uma vez que esse promove o apagamento dos limites e promove a união dos opostos. Além disso, como Ordep Serra observa em seu comentário a esse verso, Afrodite detém o epíteto de philopánnukhe (amiga da vigília/pernoite); aponta ainda que, em Hesíodo, Philótes (o desejo sexual, aquilo que motiva as uniões sexuais inclusive dos próprios deuses) é filha da Noite; e, por fim, reporta que há em Pausânia a referência a um santurário dedicado a Afrodite Epistrophía (aquela que se inclina aos amores) junto a um oráculo da Noite [2].

Por fim, a tradução que reproduzo hoje para vocês é da edição da Editora Odysseus, Hinos ÓrficosPerfumes, composta pela tradução, estudo e comentários do Prof. Dr. Ordep Serra, trabalho que tive a honra de revisar em 2015. Além dela, existe também a tradução dos Hinos Órficos feita pelo Rafael Brunhara e disponibilizada em seu blog e há ainda um trabalho de mestrado sendo orientado pelo Prof. Dr. José Marcos Mariani de Macedo e feito por Pedro Barbieri, na USP, de tradução, estudo e comentário que deve ser defendida não daqui a muito tempo.




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