Deuses Modernos: A desconexão com o divino. Mestres: Nina Darc e Sandro Andreiphontes

Como sacerdotisa de Afrodite e líder de um grupo reconstrucionista helênico, sempre busco trazer às nossas práticas um culto vivo diário e mais aproximado possível dos áureos tempos antigos da Grécia. O fato de não vivermos em um estado religioso helênico, e sim em um estado pseudo-laico cristão, dificulta, e muito, na reconstrução precisa de diversas práticas rituais. Apesar disso, venho percebendo que uma das maiores dificuldades é a própria conexão com o divino, pois está cada vez mais difícil para as pessoas identificarem e vivenciarem os Deuses na sociedade moderna.

Com o passar do tempo, a conexão com o divino vem se perdendo em meio a uma enxurrada de “necessidades” que preenchem de maneira fútil a vida humana. Hoje é muito fácil acharmos pessoas que permitem que suas contas em redes sociais organizem, pautem ou, até mesmo, ditem a forma que irão organizar suas vidas. Isto é, são pessoas que afirmam não ser possível viver sem internet e que não entendem como a vida humana conseguiu evoluir até os dias de hoje sem o auxilio da rede. Essas pessoas divinizam o dinheiro, a tecnologia, e o egocentrismo. Para elas, os shopping são verdadeiros templos, onde um simples passeio no domingo lhes garante uma renovação energética para recomeçar a semana. A evolução da humanidade, porém, não é algo ruim. O problema é o afastamento dos Deuses causado pelas tais “necessidades”, que nos empurram para uma adoração a tudo que é superficial e externo, deixando de lado os Deuses e o nosso interior.

No passado, a observação dos fenômenos naturais, até então, sem explicação, como a vida, a morte, as tempestades, os terremotos, as secas, as inundações e todos os tipos de adversidades naturais, levou ao ser humano à crença em uma força maior que administrava e arquitetava todo esse balé de vida e morte, que era encenado no grande palco da mãe terra. A constatação da existência de uma força maior, que lhes permitia viver como parte dessa natureza, criou um temor, não no sentido único de medo, como entendemos essa palavra agora, mas no sentido de fé, respeito e divinação dessa força maior que levou os seres humanos a cultuá-la, por intermédio de pequenos ritos de agradecimento, danças, ofertas e diferentes formas de adoração e culto. No dia 7 de Agosto de 1908, o arqueólogo Josef Szombathy encontrou uma uma figura feminina de barriga e seios fartos e foi datada de 22000 a 24000 antes da era atual (período Paleolítico), que foi chamada, mesmo sob algumas controvérsias, de Vênus de Willendorf (há quem afirme que a imagem, na verdade, representava a mãe terra e que o nome "Vênus" não lhe caberia, por conta disso). Independente do nome dado, a imagem é, sem dúvida, uma prova cabal de que já nesse período a divindade dessa força maior já era expressada e cultuada como uma manifestação sagrada e feminina.

Com o passar do tempo, o ser humano estreita a sua relação com o divino em diferente partes do mundo e com diferentes formas de culto. Na Grécia antiga, que até hoje é chamada de o berço da civilização ocidental, essa força divina recebe diversos nomes, cada um de acordo com suas manifestações e aspectos. A Hélade era um estado religioso regido pelos homens e guiados pelos Deuses. Acordar, trabalhar, estudar, casar, ter filhos, guerrear, viver e morrer eram formas de vivenciar o culto dos Deuses e muitos desses atos constituíam ritos de passagens. Portanto, era impossível ao heleno ver a vida sem a constante presença dos Deuses.

Mais uma vez, o tempo passa e a vida humana, a cultura e as relações mudam até que chegamos aos dias atuais, mas, diferente do passado, essa conexão com o divino se perde a cada dia. A busca pelo sagrado se torna cada vez mais externa e novos objetos e conceitos se tornam sagrados. Hoje o dinheiro é a força maior que move o mundo e é a principal fonte de alimentação da vida humana. O ser humano se torna cada vez mais distante da natureza, entendendo-se como um ser à parte que vive para subjulgar a natureza e moldá-la ao seu favor. A palavra religião, do latim religare (religar-se reconectar-se), nunca fez tanto sentido como faz nos dias atuais. Mesmo com a expansão do revivalismo, reconstrucionismo e do neopaganismo muitas pessoas, grupos e seitas ainda se encontram muito distantes do que eram os cultos no passado e do que era a conexão com o divino, cultuando essas energias, às vezes, somente em seu caráter externo, mas não entendendo nem trazendo essa egrégora para si e para sua vida.

Nos dias atuais, o temor ao divino, em grande parte das religiões e cultos, foi substituído pela barganha divina. O ser humano sai da condição de dependência dos Deuses para existir e passa a criar uma ideia de que os Deuses necessitam do ser humano para sua existência. Logo, ele entende que se aqueles Deuses não o estão cultuando da forma que ele quer (atendendo seus desejos, concedendo-lhe sorte e provendo-lhe poderes) ele simplesmente troca de Deus. No culto aos Deuses Helênicos, sobre o qual posso falar com mais propriedade, pois faz parte do meu cotidiano, percebo uma total desconexão de grupos e indivíduos com os Deuses. Citarei, aqui, um exemplo para quatro Deuses: Hermes; Perséfone; Afrodite; Efesto.

Hermes, o Deus das iniciações, o senhor dos caminhos, Deus da comunicação, da eloquência, do comércio e da sorte, o que leva as almas ao submundo (Psikopompos), mensageiro que trás para o nosso inconsciente as mensagens mundanas e divinas a serem analisadas, meditas e pesadas não nos permitindo tomar decisões apenas com foco no externo. O culto a Hermes deturpou-se ao se transformar no culto ao Deus dinheiro. As pessoas dizem "Hermes, traga-me dinheiro", "traga-me sorte" (para ter mais dinheiro), "traga-me emprego" (para ter mais dinheiro), mas ninguém pede para ser guiado pelos caminhos do inconsciente, ninguém mais pede ser guiado para o autoconhecimento, ninguém pede para ver as próprias falhas e modificar o próprio caminho.

Assim também acontece com o culto à Perséfone, rainha do submundo, senhora do inconsciente, a que faz florir, a luz que mostra, através do espelho, o verdadeiro eu. O culto à Perséfone, que percorre o caminho do autoconhecimento, hoje em dia, foi substituído pelo culto ao Deus egocentrismo, um mundo de selfies, máscaras e da estética, onde a pessoas ignoram o autoconhecimento e o que importa são quantas máscaras são precisas para ser aceito ou, até mesmo, adorado sem olhar, nem de longe, para dentro de si.

No culto a minha amada Deusa Afrodite, não poderia ser diferente. Nos templos de Afrodite era ensinado pelas sacerdotisas o amor por todas as coisas, todas as formas de amar e, acima do tudo, o amor a si e em si mesma. O corpo era o templo da deusa, o sexo e o prazer do sexo eram sagrados assim como os ritos de passagem ligados à sexualidade e ao corpo da mulher. Isso também foi usurpado e deturpado; o sexo foi banalizado e perdeu sua divindade. Hoje crianças são expostas à uma sexualidade brutal na TV, na internet e em círculos sociais. A própria menstruação é vista como suja e impura. O amor próprio se perdeu diante do culto ao externo. Em um tempo diferente, uma pessoa, que vivia a sua conexão com Afrodite, jamais faria feitiço para amarrar ou trazer de volta a pessoa amada.

Por último, mas não menos importante, Efesto, o ferreiro dos Deuses, senhor da tecnologia, aquele que nos dá as ferramentas que precisamos para evoluir, crescer e alcançar cada vez mais o divino. Muitas vezes, Efesto é o Deus que nos ensina a nos moldar para que possamos seguir, mas esse culto também foi deturpado. A tecnologia, que deveria tornar mais fácil a vida do ser humano, torna-se um dos mais poderosos Deuses da humanidade e escraviza o ser humano de tal forma que não é difícil encontrar pessoas que afirmam não viverem sem celular, tablet, carro, ou mesmo sem suas redes sociais. Ao montar um ritual para o Deus, ao invés de sanar suas dúvidas no fundo do seu coração, que é seu maior canal de conexão com o divino, é mais fácil perguntar ao oráculo moderno mais cultuado na atualidade, o Google. O Deus tecnologia se tornou um verdadeiro controlador da vida humana, que restringe as interações reais prendendo cada vez mais os indivíduos em um mundo extremamente real, que simplesmente não existe.

Não me vejo como detentora da verdade, mas, mediante a tudo que foi apresentado, convido a todos à uma reflexão. Não importa quem são os seus Deuses, por quais nomes você os chama, mas o quanto eles participam da edificação do seu eu, do seu caráter, o quanto eles participam do seu dia a dia, de que forma você usufrui das ferramentas divinas que lhe são presenteadas. O que importa é até onde você aproveita suas benções e até onde permite que elas se transformem em maldições. Viva a sua fé. Sinta os Deuses dentro de você. Um dos mais importantes princípios de Sólon diz: "Honre os Deuses". E uma das mais importantes Máximas Delficas diz: "Conheça a ti mesmo"!

( foto reproduzida da internet).

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