Cosmovisão coreana das almas. Neófita: cris.

 

Em sua rica e milenar cosmovisão, a Coreia apresenta uma fascinante compreensão da alma humana , que transcende a visão ocidental binária de corpo e espírito. Através de uma complexa teia de crenças xamânicas, budistas e taoistas, a alma é desmembrada em diferentes entidades — Hun (혼), Baek (백) e o enigmático espírito errante (Gwisin - 귀신) —, cada qual com seu destino e propósito distintos após a morte. Essa intrincada divisão não apenas molda a jornada pós-morte, mas também fundamenta uma série de rituais e práticas culturais que buscam honrar os ancestrais, guiar os falecidos e apaziguar aqueles que, porventura, não encontraram seu caminho.

A alma em três partes: Hun, Baek, e o espírito errante

A concepção da alma em três partes na cosmovisão coreana, particularmente os termos Hun (혼), Baek (백) e o conceito de espírito errante ( Gwisin - 귀신) , reflete uma complexa fusão de crenças xamânicas, budistas e, em menor grau, taoistas (que também influenciaram a região). Essa divisão ajuda a explicar o destino da alma após a morte e as práticas rituais associadas.

Hun (혼) e Baek (백): As Duas Almas

Na tradição coreana (e chinesa, de onde os conceitos são derivados), a alma humana é frequentemente vista como tendo duas partes principais:

Hun (혼): A Alma Espiritual ou Yang (양)

        Natureza: O Hun é a parte mais etérea, espiritual e "luminosa" da alma. É a alma que se conecta com o céu e os princípios celestiais ( Yang ). É considerada a essência da consciência, da mente e da personalidade.

       Destino Após a Morte: Após a morte, o Hun se eleva. Na cosmovisão budista coreana, ele é a parte que geralmente viaja para o submundo ( Jiogye ) para ser julgado pelos Dez Reis do Submundo, incluindo o Rei Yeomna . Posteriormente, ele entra no ciclo de renascimento ( Samsara ) ou, em casos de grande iluminação, pode atingir um estado de paz ou nirvana.

          Relação com Rituais: Os rituais budistas como o Sasipguje (ritos dos 49 dias) são realizados para guiar o Hun em sua jornada no pós-vida e garantir um bom renascimento.

Baek (백): A Alma Corporal ou Yin (음)

Natureza: O Baek é a parte mais material, física e "escura" da alma, ligada ao corpo físico e aos instintos terrestres ( Yin ). É a alma que permanece ligada à forma corpórea.

Destino Após a Morte: Após a morte, o Baek permanece com o corpo e gradualmente se desintegra com ele. Por isso, a correta disposição do corpo (enterro ou cremação) e a localização da sepultura são consideradas importantes para que o Baek possa descansar em paz.

Relação com Rituais: Os rituais confucionistas como o Jesa (ritos memoriais ancestrais) são realizados principalmente para honrar o Baek e os ancestrais, mantendo a conexão familiar e garantindo que os espíritos ancestrais (associados ao Baek ) sejam nutridos e não se tornem problemáticos.

O Espírito Errante (Gwisin - 귀신)

O conceito de Gwisin (귀신) está intimamente ligado ao que acontece quando o processo de transição do Hun e do Baek não ocorre como deveria.

 Quem são: Gwisin são fantasmas na mitologia coreana. Eles são as almas (ou partes da alma) de pessoas falecidas que, por diversas razões, não conseguiram fazer a transição adequada para o submundo ou para o ciclo de renascimento. Em vez disso, eles permanecem presos no mundo dos vivos.

Causas para se tornar um Gwisin:

Morte Injusta/Violenta: Pessoas que morreram de forma trágica, inesperada, assassinato ou suicídio.

Rancor/Raiva (Han - 한): Emoções intensas e não resolvidas, como vingança, ressentimento profundo ou tristeza.

Assuntos Inacabados: Tarefas ou desejos que a pessoa não conseguiu concluir em vida.

Falta de Ritos Funerários Adequados: A ausência ou a má execução dos ritos funerários pode impedir que a alma encontre seu caminho para o descanso.

Comportamento: Gwisin podem ser benevolentes, mas são frequentemente retratados como malévolos ou sofredores, causando infortúnios, doenças ou assombrando locais e pessoas. Eles buscam vingança, resolução ou paz.

Exemplos Notáveis: A Cheonyeo Gwisin (처녀귀신) , o fantasma de uma virgem que morreu antes de se casar e ter filhos, é uma das Gwisin mais conhecidas, manifestando um profundo han por sua vida não realizada.

Solução: Rituais xamânicos ( gut ) são frequentemente realizados para apaziguar os Gwisin , ajudá-los a resolver seus assuntos pendentes e guiá-los para o pós-vida, permitindo que encontrem paz.

A Relação entre os Três

A concepção dessas três partes da alma e dos espíritos errantes é fundamental para entender a relação coreana com a morte:

O Hun (alma espiritual) busca a transição e o renascimento.

O Baek (alma corporal) busca o descanso junto ao corpo.

Os Gwisin (espíritos errantes) são o resultado de uma disfunção nesse processo, necessitando de intervenção para encontrar a paz.

Essa visão da alma em múltiplas partes e seus destinos distintos após a morte influenciou profundamente as práticas religiosas e culturais coreanas, desde os rituais funerários até as histórias de fantasmas que permeiam o folclore.

A função da morte nos mitos coreanos: transição e justiça

Nos mitos coreanos, a morte não é um fim abrupto, mas sim uma transição fundamental e um processo intrinsecamente ligado à justiça. Essa visão é profundamente enraizada na fusão do xamanismo coreano ( Muism ) e do budismo, com algumas influências confucianas.

A Morte como Transição

Nos mitos coreanos, a morte é vista como a separação da alma do corpo e o início de uma jornada para o pós-vida. Não é uma aniquilação, mas uma mudança de estado ou de reino.

Separação da Alma: A crença na dualidade da alma ( o Hun e o Baek ) é central. O Hun (alma espiritual) se desliga do corpo para seguir para o submundo, enquanto o Baek (alma corporal) permanece ligado ao corpo físico antes de se desintegrar.

Guia de Almas ( Jeoseung Saja ): A função dos Jeoseung Saja é essencial nessa transição. Eles são os mensageiros do submundo, encarregados de escoltar as almas dos falecidos. Sua chegada marca a inevitabilidade da morte e o início da viagem da alma para o além. Eles são vistos como burocratas imparciais que apenas cumprem seu dever.

Jornada para o Submundo: A alma não vai diretamente para seu destino final. Ela embarca em uma jornada complexa através do submundo ( Jiogye ), onde enfrentará uma série de julgamentos. Esse período de transição é crucial para determinar o próximo estado da alma.

Ritos Funerários: Rituais como o Sasipguje (rituais dos 49 dias, de origem budista) são realizados para ajudar a alma em sua jornada pelo submundo. Acredita-se que, durante esses 49 dias, a alma passa pelos julgamentos, e as orações dos vivos podem influenciar um bom resultado e um renascimento favorável.

Conexão Contínua: Mesmo após a morte e a transição da alma, a conexão entre os vivos e os mortos é mantida. Os Jesa (rituais ancestrais confucianos) são realizados para honrar os ancestrais, garantindo sua paz no pós-vida e buscando bênçãos para os vivos. Isso demonstra que a morte é uma transição, mas não um rompimento total dos laços.

A Morte como Justiça

Um dos pilares mais fortes da função da morte nos mitos coreanos é a ideia de justiça retributiva, fortemente influenciada pelo budismo e pelo conceito de Karma.

Rei Yeomna (Yama) : O principal deus da morte e juiz supremo do submundo coreano é o Rei Yeomna (equivalente ao Yama do budismo indiano). Ele preside sobre os Dez Reis do Submundo, que julgam as ações (boas e más) que a alma cometeu em vida.

Julgamento Cármico: A morte não é um evento aleatório ou arbitrário; é o momento em que as ações de uma vida inteira são pesadas. Cada um dos dez reis do submundo pode presidir sobre um tipo específico de julgamento (por exemplo, sobre preguiça, infidelidade, etc.). O destino da alma no próximo renascimento (ou o tipo de "inferno" pelo qual passará) é determinado estritamente pelo seu karma.

Punição e Purificação: Os "infernos" no submundo coreano não são lugares de punição eterna, mas sim de purificação. As almas que cometeram atos malignos podem passar por sofrimentos específicos para expiar seus pecados. Esse sofrimento é visto como uma forma de justiça que permite à alma limpar seu karma antes de renascer.

Ciclo de Renascimento (Samsara): A justiça final da morte se manifesta no ciclo de renascimento. Uma vida virtuosa pode levar a um renascimento em uma condição mais elevada (como um humano, ou até mesmo um deus temporariamente), enquanto uma vida de maldades pode resultar em um renascimento em um reino inferior (como um animal, um espírito faminto ou nos próprios infernos). A morte é o portal para essa reencarnação justa.

Apaziguamento de Gwisin: A existência de Gwisin (fantasmas errantes) também sublinha o aspecto da justiça. Um gwisin geralmente é uma alma que não conseguiu descansar em paz devido a uma morte injusta, um rancor (han) não resolvido ou assuntos inacabados. As histórias de gwisin muitas vezes servem como contos morais sobre a necessidade de buscar justiça ou de completar o que se iniciou para garantir a paz no pós-vida.

Em resumo, a morte nos mitos coreanos é um evento de transição obrigatória e ordenada, conduzida por mensageiros como o Jeoseung Saja , e um momento de justiça implacável e cármica, administrada pelos reis do submundo sob a égide do Rei Yeomna , que determina o destino da alma no ciclo contínuo de vida e renascimento.

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