A Arquitetura da Ausência. - Sacerdote: Leonardo Raven.
Por anos, encarei este trabalho não como uma pesquisa qualquer, mas como uma perseguição. Persegui um fantasma através dos desertos da Judeia, um eco nas cavernas de Qumran, uma sombra nos pátios do Templo de Salomão.
A vida me ensinou a procurar nomes, datas, influências diretas.
Mas minha intuição, afiada nas encruzilhadas da minha própria jornada, me sussurrava outra coisa: "Não procure o que foi dito. Procure o que precisou ser silenciado." A presença mais poderosa, às vezes, é aquela cuja ausência foi meticulosamente arquitetada.
Este estudo, portanto, não é um mapa para encontrá-La. É o registro do espaço vazio que Ela deixou.
É uma exegese de sua ausência, uma teologia do negativo, pois foi ao proibir, demonizar e absorver suas funções primordiais, a guarda dos limiares, a soberania sobre a escolha, a sabedoria da terra, que a teologia de Israel se definiu.
Estas são minhas anotações pessoais.
A CONQUISTA DOS LIMIARES
Meu primeiro vislumbre não foi de uma figura, mas de um espaço. Hekate é uma deusa da topologia sagrada. Seu templo é o portão (propylaia), sua paróquia é a encruzilhada (enodia).
Ela não governa um reino, mas as fronteiras entre todos eles. E foi precisamente nessas fronteiras que a teologia de Yahweh travou sua batalha mais ferrenha. Não se tratou de uma simples substituição; foi uma anexação, uma nacionalização do limiar.
I. A Nacionalização dos Portões
O poder sobre os portões era um domínio hekatiano por excelência. O portão é um axis mundi em miniatura, um espaço de transição onde os mundos se tocam.
Hekate não o possui; ela o guarda. Ela é a mediadora neutra. A teologia bíblica não podia tolerar tal neutralidade. O limiar tinha que ser conquistado, marcado, transformado em um posto de controle ideológico.
Salmo 24:7, 9: "Levantai, ó portas, as vossas cabeças; levantai-vos, ó portais eternos, para que entre o Rei da Glória."
Notei aqui que isso não é um pedido. É uma ordem de rendição. O portão, uma entidade antiga ("portais eternos"), deve se curvar e reconhecer um novo soberano.
Sua autonomia é revogada. O espaço liminar se torna o tapete vermelho para o poder centralizado.
Deuteronômio 6:9: "E as escreverás nos umbrais de tua casa e nas tuas portas."
Este versículo foi uma revelação para mim. Onde antes se poderia colocar um símbolo apotropaico de Hekate para guardar a passagem, a nova lei exige a inscrição da própria lei.
A palavra de Yahweh substitui a presença da guardiã. O limiar deixa de ser um espaço mágico de transição e se torna um outdoor para a doutrina do estado teocrático. A proteção não vem mais de uma deusa mediadora, mas da obediência a um texto.
Isaías 26:2: "Abri as portas, para que entre a nação justa, que guarda a fidelidade."
Aqui, a conquista está completa. O portão se torna seletivo, um filtro moral. A função de Hekate de guiar todos os viajantes é pervertida.
Agora, o portão só se abre para os "justos", os que "guardam a fidelidade", a fidelidade, claro, ao culto de Yahweh. A porta universal virou a entrada de um clube exclusivo.
A Maldição da Encruzilhada
Se o portão foi conquistado, a encruzilhada foi amaldiçoada.
A encruzilhada é o altar de Hekate, o santuário do livre-arbítrio. É o momento suspenso no tempo onde múltiplos futuros são possíveis, todos iluminados por suas tochas. É o símbolo máximo da escolha autônoma.
E era precisamente essa autonomia que o monoteísmo radical de Israel precisava erradicar.
Jeremias 6:16:
"Assim diz o SENHOR: Ponde-vos à beira dos caminhos e vede; perguntai pelas veredas antigas, qual é o bom caminho, e andai por ele..."
À primeira vista, parece uma celebração da escolha. Mas minha análise revelou a armadilha retórica.
O convite para "ver" e "perguntar" é imediatamente anulado pela premissa de que existe apenas "o bom caminho", no singular. As outras veredas, as outras opções na encruzilhada, são implicitamente invalidadas antes mesmo de serem consideradas.
É a ilusão da escolha. Hekate oferece luz para ver todos os caminhos; Yahweh aponta para um e apaga as outras tochas.
Deuteronômio 5:32:
"Tende, pois, o cuidado de fazer como vos ordenou o SENHOR, vosso Deus; não vos desviareis nem para a direita nem para a esquerda."
Esta ordem, repetida incessantemente no Pentateuco, é a antítese teológica da encruzilhada. É a sacralização da linha reta.
Qualquer desvio é pecado. A sabedoria não reside em escolher bem, mas em não escolher de forma alguma, em simplesmente seguir a rota predeterminada. A encruzilhada se torna, assim, o símbolo máximo da tentação e da heresia.
Isaías 30:21:
"E os teus ouvidos ouvirão a palavra do que está por detrás de ti, dizendo: Este é o caminho, andai nele, sem vos desviardes nem para a direita nem para a esquerda."
A voz divina aqui não ilumina as opções; ela as elimina. A consciência não é chamada a deliberar, mas a obedecer a uma instrução que remove a ambiguidade.
Onde Hekate reina no silêncio da deliberação, esta voz se impõe para evitar que a deliberação sequer aconteça.
Percebi, então, que para construir sua autoestrada para o céu, a teologia bíblica teve que pavimentar e fechar todas as encruzilhadas sagradas da terra.
A SOMBRA E O ESPECTRO - PRIMEIRAS EVIDÊNCIAS TEXTUAIS
Depois de mapear a conquista do espaço sagrado, comecei a procurar os fantasmas. Se uma divindade tão poderosa foi suprimida, sua memória não poderia ser simplesmente apagada.
Ela assombraria os textos, aparecendo nas margens, nas crenças populares que os profetas tanto se esforçaram para erradicar, e nos momentos de crise em que o novo sistema falhava
A Rainha dos Céus - A Memória que se Recusa a Morrer
O livro de Jeremias se tornou para mim um campo de batalha. Não li as palavras de um profeta falando a um povo desviado, mas o diário de um agente da revolução teológica lutando contra uma fé popular resiliente e profundamente amada.
A "Rainha dos Céus" não era uma importação estrangeira; era a memória viva da Deusa.
Jeremias 7:18:
"Os filhos apanham a lenha, os pais acendem o fogo, e as mulheres amassam a farinha para fazerem bolos à Rainha dos Céus; e oferecem libações a outros deuses, para me provocarem à ira."
A descrição é íntima, familiar. Não é um culto de templo, oficial, mas uma prática doméstica, enraizada na vida cotidiana.
É a família inteira, crianças, homens e, crucialmente, as mulheres como agentes litúrgicos, que a venera. Ela pertence ao povo.
A Resposta do Povo (Jeremias 44)
Jeremias 44:17-19:
"Mas certamente cumpriremos toda a palavra que saiu da nossa boca, queimando incenso à Rainha dos Céus... como nós e nossos pais, nossos reis e nossos príncipes, fizemos nas cidades de Judá e nas ruas de Jerusalém; e tínhamos fartura de pão, e estávamos bem, e não víamos mal algum. Mas desde que cessamos de queimar incenso à Rainha dos Céus... tivemos falta de tudo e fomos consumidos pela espada e pela fome."
Esta passagem é, para mim, uma das mais explosivas de todo o Antigo Testamento. É a voz do povo respondendo ao profeta.
Sua lógica é empírica, não teológica. Eles associam o culto à Deusa com a paz e a prosperidade ("tínhamos fartura de pão"). E associam sua supressão, a reforma monoteísta, com o desastre.
É um testemunho teimoso de que a antiga aliança com o divino feminino funcionava. A Rainha dos Céus, em sua face cósmica e nutridora, é um espectro poderoso da mesma força que Hekate representa como Phosphoros, a portadora da luz celeste.
A Mulher de Endor - A Chave Ctônica em Mãos Proibidas
Se Jeremias me mostrou a luta contra a face celestial da Deusa, o livro de Samuel revelou a necessidade inescapável de sua face ctônica. A história da chamada "feiticeira" de Endor é a prova suprema da insuficiência do novo sistema.
1 Samuel 28:7: "Então disse Saul aos seus servos: Buscai-me uma mulher que tenha o espírito de necromancia [Ba'alat 'ov - Mestra do Poço/Espírito], para que eu vá a ela e a consulte."
O Rei Saul. O ungido de Yahweh. Em seu momento de desespero absoluto, abandonado por seu próprio Deus ("o SENHOR não lhe respondera, nem por sonhos, nem por Urim, nem por profetas"), ele não procura mais sacerdotes.
Ele procura o poder proibido. Ele procura uma filha de Hekate Chthonia, uma mulher que detém as chaves para o mundo inferior.
1 Samuel 28:11-12: "A mulher então lhe disse: A quem te farei subir? E disse ele: Faze-me subir a Samuel. Vendo, pois, a mulher a Samuel, gritou em alta voz..."
Ela consegue. Onde o sistema oficial de adivinhação de Israel falhou, ela abre o portal. O texto, escrito por seus inimigos teológicos, a condena com o título de "feiticeira", mas é forçado a admitir seu poder aterrorizante e eficaz.
A ironia é sublime: o primeiro rei de Israel só consegue obter a verdade sobre seu destino através de uma sacerdotisa da tradição reprimida. Este foi, para mim, o reconhecimento involuntário de que, por mais que se conquistem os portões da terra, as chaves para os portões da alma e do submundo permanecem em outras mãos.
A FAGOCITOSE DA SABEDORIA
Depois de mapear a conquista do espaço e o assombro da memória, me deparei com o mais engenhoso dos processos teológicos.
O poder arquetípico da Sabedoria Feminina era central e inegável demais para ser simplesmente erradicado como a "Rainha dos Céus".
A estratégia aqui foi mais insidiosa: uma espécie de fagocitose, um ato de engolir, digerir e reincorporar a força da Deusa em uma nova forma, aceitável para a estrutura patriarcal emergente.
Sophia: O Fantasma Luminoso no Coração do Cânone
A Chokmah (Sabedoria) do Livro de Provérbios é, para mim, o fantasma mais nítido de Hekate em toda a Escritura. Sua descrição não é a de uma abstração, mas a de uma divindade imanente, agindo precisamente nos domínios de Hekate.
Provérbios 8:1-3, 22-23
"A sabedoria não clama?... No cume das alturas, junto ao caminho, nas encruzilhadas das veredas ela se posta. Junto às portas, à entrada da cidade... ela brada. [...] O SENHOR me possuiu no princípio de seus caminhos... Desde a eternidade fui ungida, desde o princípio, antes do começo da terra."
A topologia é inconfundível: Hekate Enodia (nas encruzilhadas) e Propylaia (nos portões). Sua origem é coeterna com Deus, não uma criação Sua.
Ela é uma Titânide, uma força primordial cuja honra, como a de Hekate no mito de Hesíodo, foi mantida. Neste ponto da teologia hebraica, a presença de uma teofania feminina poderosa era não só tolerada, como necessária para explicar o cosmos.
Ela é Hekate Phosphoros, a portadora da luz da sabedoria.
A Transmutação em Logos: A Morte da Deusa Filosófica
O golpe de mestre, o que silenciou a Deusa por séculos, veio com a helenização do pensamento judaico e a ascensão do Cristianismo. Foi um processo em duas fases.
Primeiro, filósofos como Fílon de Alexandria começaram a fundir o conceito hebraico de Sophia com o conceito grego de Logos – a Palavra, a Razão, o princípio ordenador.
O Logos, embora gramaticalmente neutro ou masculino, era uma força abstrata, desencarnada, o que iniciou o processo de afastar a Sabedoria de sua imanência terrena e feminina.
O passo final e decisivo foi dado pelo Evangelho de João. Ele pega essa tradição do Logos-Sophia e declara inequivocamente que este princípio cósmico se encarnou em uma figura histórica e masculina.
João 1:1, 14: "No princípio era o Verbo (Logos), e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. [...] E o Verbo se fez carne e habitou entre nós..."
A fagocitose está completa. A Deusa que clamava nas encruzilhadas foi totalmente absorvida e reidentificada no corpo de um homem. A função não foi eliminada, foi transferida e transformada.
E para selar a transferência, este novo Logos declara:
João 14:6: "Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vem ao Pai senão por mim."
Esta foi, para mim, a descoberta mais arrepiante. É a declaração teológica do fim da encruzilhada. Não há mais múltiplos caminhos a serem iluminados por uma guia.
Há apenas um caminho, que é a própria figura de autoridade. A Deusa que oferecia a liberdade da escolha foi substituída por um Deus que se oferece como a única escolha possível. A função de Hekate Enodia foi tornada teologicamente obsoleta.
A NEGAÇÃO DA SOMBRA E A ÉTICA DA TOCHA
Resta a parte mais sombria, os aspectos de Hekate que não podiam ser nem conquistados nem absorvidos. Estes foram violentamente reprimidos, declarados impuros, anátemas.
Foi uma guerra declarada contra a psique, contra o conhecimento ctônico e a sabedoria do corpo.
A Proibição da Chave Ctônica
Hekate é Chthonia, a do submundo, aquela que detém as chaves para o reino dos mortos. O acesso a este reino é o acesso ao inconsciente, aos ancestrais, a uma fonte de sabedoria que não é celestial nem textual.
A proibição bíblica da necromancia é, portanto, a proibição de uma forma de gnose.
Deuteronômio 18:10-11: "Não se achará entre ti... nem feiticeiro... nem quem consulte os mortos; pois todo aquele que faz tal coisa é abominação ao SENHOR."
A palavra "abominação" revela a profundidade do medo teológico. Não se trata de uma simples regra, mas de uma repulsa visceral.
Controlar o acesso aos mortos é controlar a narrativa, a história, a própria psique de um povo. Ao proibir essa prática, o sacerdócio levítico estabeleceu um monopólio sobre a comunicação com o invisível, cortando a ligação direta do povo com seu próprio submundo interior, um reino que Hekate governa.
A Condenação da Sabedoria da Terra (Pharmakeia)
Hekate é a deusa da pharmakeia, do conhecimento das ervas, venenos e curas. Esta é uma sabedoria da terra, empírica, muitas vezes nas mãos de mulheres. A Bíblia, especialmente o Novo Testamento, consistentemente traduz pharmakeia como "feitiçaria" e a condena como obra da carne.
Êxodo 22:18: "Não deixarás viver a feiticeira."
A brutalidade deste comando visa erradicar uma fonte alternativa de poder. A mekhashephah (feiticeira) é uma rival do sacerdote.
Seu poder vem da terra, não de um texto sagrado. Ela cura o corpo, enquanto o sacerdote se foca na alma. Sua condenação é a condenação de uma espiritualidade imanente e corporal.
Gálatas 5:19-21: "Ora, as obras da carne são manifestas, as quais são: ... feitiçaria (pharmakeia), inimizades... os que cometem tais coisas não herdarão o reino de Deus."
Aqui, o apóstolo Paulo coloca a sabedoria da terra em oposição direta ao "reino de Deus". É a elevação final do espírito (pneuma) sobre a matéria, da fé abstrata sobre o conhecimento empírico. É a rejeição final do domínio ctônico e terreno de Hekate.
CHAVE NO NOSSO PRÓPRIO BOLSO
Passei anos seguindo essas pistas, traçando a silhueta de uma ausência. E no fim, eu entendi.
O Cânone Bíblico não é a história de um Deus que substituiu uma Deusa. É a história de como uma cultura, para sobreviver, centralizou o poder, masculinizou a sabedoria e reprimiu a sombra.
A convergência final, a mais irônica e bela, permanece no ato de ajudar. A Bíblia o ordena como o mais alto dever.
Hekate o encarna como sua mais pura essência: Hekate Soteira, a Salvadora.
Provérbios 14:31: "O que oprime o pobre insulta ao seu Criador, mas o que se compadece do necessitado o honra."
Esta é a encruzilhada final. Não entre Yahweh e Hekate, mas dentro de nós.
Ajudamos por obediência a um mandamento externo, para honrar um Criador, como diz o Provérbio?
Ou ajudamos porque a tocha da nossa própria consciência, nossa gnosis interna, ilumina o sofrimento do outro e nos impele à ação, em um ato de soberania e compaixão?
Meu estudo me levou a crer que, no final, os nomes dos deuses importam menos do que a direção para a qual suas mãos apontam. E tanto a mão do profeta quanto a mão da Deusa apontam para o caído na beira da estrada.
ONDE A TEOLOGIA ENCONTRA A ESTRADA
Passei as duas primeiras partes anteriores deste meu estudo particular desconstruindo a ausência, mapeando os espaços vazios e seguindo os fantasmas de uma Deusa nos corredores de uma fé que a negava. Foi um exercício da mente, uma arqueologia da alma.
Mas a busca pela divindade, se permanece apenas no intelecto, se torna um jogo estéril. A verdadeira gnose não é o que se sabe, mas o que se faz com o que se sabe.
É aqui, neste terceiro volume, que a poeira dos textos antigos encontra a lama do caminho. É aqui que a fria análise teológica deve se aquecer no fogo da compaixão.
Pois descobri, na mais inesperada das convergências, que tanto a Deusa das Encruzilhadas quanto o Deus do Deserto apontam para a mesma direção: para o caído, o esquecido, o sem voz.
Este é o estudo do ato sagrado de ajudar, o ponto onde as duas grandes tradições, em sua mais pura essência, se tocam e, por um instante, falam a mesma língua.
A CONVERGÊNCIA INESPERADA - SOTEIRA E O BOM SAMARITANO
A mão estendida. O gesto mais simples e, talvez, o mais divino.
Encontrei este gesto como a pedra angular tanto da ética hekatiana quanto do imperativo bíblico. As fontes de sua motivação diferem, mas a ação é a mesma.
Hekate Soteira: A Compaixão como Essência
Nos epítetos de Hekate, um ressoa com uma força particular: Soteira. A Salvadora, a Ajudante. No mito da descida de Perséfone, sua intervenção não é ordenada por Zeus.
Ela é a única que, de sua caverna, ouve os gritos de dor. Sua ação nasce da percepção, da empatia. Sua compaixão não é um mandamento a ser seguido, mas sua própria natureza em movimento.
Ela é a protetora inata daqueles que a sociedade esquece nas encruzilhadas da vida: os marginalizados, os viajantes perdidos, os que tomam decisões difíceis na solidão da noite. Seu auxílio não é um ato de caridade condescendente; é um ato de reconhecimento.
Ao segurar a tocha para o perdido, ela não lhe diz para onde ir, mas ilumina o chão sob seus pés para que ele mesmo possa escolher. A ajuda, para Hekate, é a restauração da agência do outro. É um ato de empoderamento.
O Imperativo Bíblico: A Justiça como Mandamento Divino
Se em Hekate a ajuda é uma emanação de sua essência, na Bíblia, ela é um mandamento explícito, a mais alta exigência de Deus para com seu povo. Não é uma opção, é a própria definição de retidão.
Isaías 1:17:
"Aprendei a fazer o bem; praticai o que é reto; ajudai o oprimido; fazei justiça ao órfão; defendei a causa da viúva."
A ordem é direta. A espiritualidade não é apenas ritualística ("Não continueis a trazer ofertas inúteis!"), mas fundamentalmente ética. A mão que se estende ao oprimido é mais sagrada que a mão que acende o incenso.
Deuteronômio 15:7-8, 11:
"Se houver entre vós um necessitado... não endurecerás o teu coração, nem fecharás a tua mão... Livremente lhe abrirás a mão e lhe emprestarás o que lhe falta... Pelo que te ordeno, dizendo: Livremente abrirás a tua mão para o teu irmão, para o teu necessitado, e para o teu pobre na tua terra."
Notei a força da linguagem: "te ordeno". A compaixão é codificada em lei. É um dever sagrado, uma obrigação que define a relação da comunidade com Deus.
A Identificação com Cristo
E no Novo Testamento, essa ideia atinge seu ápice, onde o próprio Cristo se identifica com os necessitados:
Mateus 25:40:
"Em verdade vos digo que, quando o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes."
Aqui, o ato de ajudar transcende a ética e se torna teofania. Ajudar o outro não é apenas um ato de bondade; é um encontro direto com o divino.
A AMPLITUDE DO CUIDADO - A CRIAÇÃO E OS SEM VOZ
A ética da mão estendida, descobri, não se limita aos seres humanos. Ela se expande para incluir toda a criação, especialmente aqueles que não podem falar por si mesmos: os animais.
I. Os Cães de Hekate e os Guardiões do Limiar
A associação de Hekate com os cães sempre me fascinou. Os cães, no mundo antigo, eram criaturas liminares.
Viviam nas fronteiras entre o selvagem e o doméstico, guardavam as soleiras das casas, uivavam para a lua. Eram, muitas vezes, animais errantes, sem dono.
A afinidade de Hekate com eles não é um mero detalhe iconográfico. É uma declaração de princípios.
Ao tomar os cães como seus companheiros sagrados, ela se declara protetora dos que não têm voz, dos que vivem nas margens. Seus cães são os psicopompos que a acompanham em suas jornadas noturnas, os guardiões que sentem o que os humanos não veem.
Cuidar de seus cães é um ato de devoção que simboliza o cuidado com todas as criaturas vulneráveis que compartilham conosco as estradas escuras da vida.
O Zelo do Criador: Os Animais no Cânone Bíblico
A Bíblia apresenta uma visão complexa, por vezes contraditória, mas inegavelmente profunda sobre o valor da vida animal. Embora o conceito de "domínio" em Gênesis seja frequentemente mal interpretado como tirania, uma leitura mais atenta revela um chamado à mordomia, ao cuidado responsável.
Provérbios 12:10: "O justo cuida da vida dos seus animais, mas as afeições dos ímpios são cruéis."
Este versículo é de uma clareza cristalina. O tratamento dado aos animais é um termômetro da justiça de uma pessoa. O cuidado com a criação não é um assunto secundário, mas central para uma vida reta.
Jó 39:1-5: "Sabes tu o tempo em que as cabras montesas dão à luz?... Ou podes contar os meses que cumprem?... Quem libertou o jumento selvagem...?"
Neste magnífico discurso, Deus fala de seu prazer e cuidado com os animais selvagens, criaturas que existem inteiramente fora da utilidade humana. Ele se deleita em sua liberdade e em seus instintos. É um vislumbre de uma ecologia divina, onde cada ser tem valor intrínseco aos olhos do Criador.
E, profeticamente, a visão de paz final inclui a harmonia de toda a criação:
Isaías 11:6: "E morará o lobo com o cordeiro, e o leopardo com o cabrito se deitará..."
A redenção final no pensamento bíblico não é apenas humana, mas cósmica. O cuidado com os animais é, portanto, um ato de antecipação escatológica, um esforço para realizar na terra a paz que é prometida para o fim dos tempos.
A MESMA MÃO, DUAS FONTES DE LUZ
E assim, no fim da minha jornada através dos textos, chego a esta clareira. A ação de estender a mão a um ser necessitado, seja ele humano ou animal, é o ponto onde as duas estradas se encontram.
A fonte da luz pode ser diferente. De um lado, a Tocha de Hekate, que ilumina de dentro para fora. É a luz da gnosis, do reconhecimento soberano de que o outro ser, em seu sofrimento, é um reflexo de mim mesmo. A ação nasce de uma escolha autônoma, de uma ressonância da alma.
Do outro lado, o Candelabro do Templo, que ilumina de fora para dentro. É a luz da Lei, do mandamento divino que estrutura a comunidade. A ação nasce da obediência, do dever sagrado de honrar a Deus servindo à sua criação.
Mas para aquele que está caído na escuridão da estrada, o viajante assaltado, a viúva sem amparo, o cão abandonado tremendo de frio, a origem da luz não importa. O que importa é o calor do fogo, o feixe de luz que rompe a noite, a mão que se estende e o tira do chão.
Eu fecho esta aula, não com a arrogância de quem encontrou todas as respostas, mas com a humildade de quem descobriu a verdadeira pergunta. E a pergunta não é "Em que deus você acredita?", mas "Quando foi a última vez que você foi a luz na encruzilhada de alguém?". Pois é nesse ato, e somente nele, que nos tornamos, nós mesmos, a imagem viva da divindade que buscamos.


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