Do Catimbó à Jurema Sagrada: Percurso Histórico de uma Religião Brasileira. - Sacer: Nalu Khaire.
O Catimbó, muitas vezes referido hoje como Jurema Sagrada ou simplesmente Jurema, é uma das mais antigas e autênticas tradições mágico-religiosas brasileiras. É um culto de sincretismo complexo, fortemente ligado às cosmologias indígenas do Nordeste do Brasil.
Origem e Cultura do Catimbó/Jurema
O Catimbó tem suas raízes mais profundas nas práticas xamânicas indígenas do Nordeste, particularmente nos rituais de povos como os Potiguara, Kiriri, e outros.
Matriz Indígena: O elemento central do culto é a Jurema, uma árvore da Caatinga e do Agreste (geralmente Mimosa hostilis ou outras acácias) considerada sagrada. A casca dessa árvore é usada para fazer uma bebida ritual (o vinho de Jurema) que induz ao transe e ao contato com o mundo espiritual. A própria palavra "Jurema" (que alguns consideram ser de origem Tupi Yu-r-ema) e o culto aos Encantados e às forças da natureza são a base indígena do Catimbó.
Sincretismo: Ao longo do tempo, o culto se difundiu dos sertões para o litoral e incorporou elementos de outras tradições:
Matriz Africana: Contribuições de negros escravizados (que fugiam e encontravam refúgio em aldeias indígenas) com o culto aos ancestrais e a incorporação de algumas entidades africanas.
Catolicismo Popular e Magia Europeia:
Elementos como o uso da imagem do "Pai, Filho e Espírito Santo" (em alguns terreiros) e a incorporação de práticas de magia popular e crendices coloniais, incluindo o uso de rezas e santos.
Terminologia: O termo Catimbó
historicamente foi usado, por vezes, de forma pejorativa, associado à feitiçaria. Atualmente, os praticantes preferem usar o termo Jurema Sagrada para enfatizar sua ancestralidade e caráter religioso sério.
O Culto e o Mundo Espiritual (Juremá)
O Juremá (Reino Espiritual)
O mundo espiritual do Catimbó/Jurema é chamado de Juremá ou Mundo Encantado. É uma cosmologia complexa, organizada em Cidades ou Reinos Espirituais (como Vajucá, Urubá, Juremal, Josafá) que se manifestam durante o transe.
O panteão é formado principalmente por espíritos de antigos praticantes ou chefes do culto que, ao morrerem, se "encantaram" e foram transportados para o Juremá, de onde continuam a guiar os vivos.
Mestres e Mestras de Jurema: São as entidades centrais. Foram figuras ilustres em vida, conhecidas por sua sabedoria, uso de ervas e habilidades xamânicas. Eles se manifestam para realizar curas, aconselhamento e "trabalhos de cachimbo" (magia).
Caboclos da Jurema:
Espíritos de antigos pajés, índios e figuras ligadas à mata e aos rios, frequentemente invocados para prescrever ervas medicinais, banhos e afastar o mau-olhado.
Outras Entidades: Devido ao sincretismo, é comum a presença de entidades de outros cultos, como Exus e Pombagiras, que são "abraçadas" pela Jurema por afinidade e passam a integrar o panteão de espíritos.
Rituais e Práticas Sagradas
O Catimbó/Jurema é essencialmente um culto de incorporação e de caráter mágico-curativo, focado na busca por equilíbrio, cura e conhecimento.
Uso da Jurema e do Fumo:
Vinho de Jurema:
A ingestão da bebida ritual é crucial para a prática, pois ajuda a transportar o médium para o Juremá (o "tombo da Jurema") e a estabelecer contato com as entidades. É uma prática de grande responsabilidade e que exige preparação.
Cachimbo/Fumo ("Fumaçada"): O uso do tabaco, através de cachimbos, é um ritual fundamental, muitas vezes dando o nome ao culto (Catimbau é uma atribuição para "cachimbo"). A fumaça é usada para defumar, curar doenças, purificar o ambiente e auxiliar no transe.
Louvor e Pontos: O culto utiliza cânticos (chamados de pontos) para invocar, louvar e se conectar com os Mestres, Encantados e ancestrais, transmitindo a "ciência" e o entendimento espiritual.
Culto à Natureza: A Mãe Natureza é considerada sagrada, sendo fonte de cura e morada das Entidades. Os rituais são frequentemente realizados em terreiros ou nas matas. As oferendas aos mestres e caboclos geralmente incluem elementos naturais como frutas, mel e a valorização das ervas sagradas.
O Sincretismo Católico no Catimbó
O Catimbó, desde o seu surgimento, desenvolveu-se em um contexto de repressão e tentativa de catequização, o que o forçou a absorver e adaptar elementos do Catolicismo.
A Mesa e o Altar (Peji)
O principal local de culto no Catimbó é a Mesa de Jurema (ou Peji), que é o centro de sincretismo:
Crucifixo e Santos: A mesa frequentemente exibe um crucifixo, imagens de santos católicos e até o terço, ao lado dos cachimbos, garrafas de vinho de Jurema e objetos dos Mestres e Caboclos.
Hierarquia: Em algumas casas, a hierarquia espiritual começa com uma referência direta à Trindade Católica: "Pai, Filho e Espírito Santo", seguida pelas entidades da Jurema.
O Uso de Rezas e Benzeduras
As rezas católicas são incorporadas na prática do Catimbó-Jurema, sendo usadas pelos Mestres e praticantes para alcançar objetivos mágicos e de cura.
Função Mágico-Curativa: Os Mestres de Jurema (entidades) são frequentemente invocados como curandeiros e benzedores. Eles usam rezas tradicionais, orações a santos e benzeduras (ligadas ao Catolicismo Popular)
Curar doenças físicas e espirituais.
Afastar o "mau-olhado" e a inveja.
Proteger contra feitiços e infortúnios.
Exemplos: Orações a São Jorge, São Lázaro, e a Nossa Senhora (sob diferentes títulos) são adaptadas para os cânticos e rituais, muitas vezes misturando a invocação do santo com a invocação do Mestre.
A Doutrina da Jurema
O próprio mito da Jurema, em algumas comunidades, carrega a marca do Catolicismo:
A Jurema Sagrada: Um mito muito conhecido entre alguns juremeiros narra que Jesus Cristo teria descansado à sombra da árvore da Jurema, tornando-a sagrada e poderosa. Isso confere à planta um valor religioso que transcende sua importância xamânica original.
O Resultado do Sincretismo
O sincretismo no Catimbó não significa que ele é "metade católico". Pelo contrário, a tradição usou os elementos católicos (rezas, santos) para:
Resultado do sincretismo: Sob o regime colonial e em períodos de repressão, a presença de santos católicos e rezas nas práticas facilitava a aceitação social e a dissimulação do culto, permitindo que a essência indígena e africana da Jurema sobrevivesse.
Expansão do Poder: A incorporação dos santos expandiu o poder de atuação dos Mestres, pois eles se apresentavam como peritos na "magia" europeia e nas "ciências" cristãs, além de dominarem os saberes das matas.
O Catimbó se tornou, assim, um "consultório" ou uma "ciência" que lida com todos os planos: Indígena (Mestres e Encantados), Africano (Exus/Pombagiras em algumas vertentes) e Católico/Europeu (rezas, santos, feitiçaria popular).
Conclusão
O Catimbó (ou Jurema Sagrada) é um excelente exemplo do profundo sincretismo religioso brasileiro, onde elementos das culturas indígena, africana e europeia (católica) se fundiram para criar uma tradição única no Nordeste do país. As rezas católicas e a devoção a santos são uma parte fundamental dessa fusão.


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