Isis: O Princípio Cósmico Feminino. Neófito: Demersio
Ísis não é apenas a imagem materna que sobreviveu em nossa memória popular; ela é o princípio feminino cósmico, a matriz primordial de todas as coisas, o ventre invisível de onde brota a ordem e a vida. Os egípcios a reconheciam como a Senhora dos Dez Mil Nomes, pois nela estão condensadas todas as faces do feminino: a nutridora, a guardiã, a justiceira, a amante, a parteira, a destruidora e a tecelã de destinos. Seu nome é um eco eterno do mistério da criação, e sua presença atravessa os tempos como um sopro invisível que anima tanto o grão de areia quanto as estrelas mais distantes.
Plutarco, em sua Moralia, já compreendia que Ísis não era apenas uma deusa, mas o próprio princípio receptivo da Natureza, a inteligência que se deixa moldar por todas as formas e que gera, em sua gestação infinita, cada ser e cada cosmos. Assim, Ísis é a natureza em seu aspecto generoso e fértil, mas também em seu aspecto rigoroso e ordenador — aquilo que recebe e aquilo que dá, aquilo que dissolve e aquilo que mantém unido.
No princípio, antes do princípio, havia apenas o abismo líquido e escuro, a bolha silenciosa que continha todas as possibilidades. Esse útero universal, descrito nos hinos egípcios, é o corpo invisível de Ísis. Ali se gestam os ciclos: nascimento, vida, morte e renascimento. Nada escapa a esse ritmo, nem os deuses, nem os homens, nem os mundos. O sol nasce, mergulha, morre e renasce em seu ventre; e assim também a alma humana, em suas incontáveis travessias.
Em seus múltiplos véus, Ísis revela aspectos que outras culturas reconheceram sob nomes diferentes. Como Maat, ela é a ordem universal, o peso da pena que decide o destino das almas, a harmonia entre caos e cosmos. Ela é a justiça que não pertence a tribunais humanos, mas ao coração do universo, onde tudo precisa vibrar em equilíbrio para que exista. Maat não é apenas um conceito abstrato: ela é a condição sem a qual nem o tempo, nem o espaço poderiam se sustentar.
Em sua face de Seshat, Ísis se torna o Intelecto Divino, guardiã dos registros eternos. Ela escreve com cálamo e paleta o que foi e o que será, desenhando na memória do cosmos o destino dos reis, dos templos, das cidades e das almas. Com a pele da pantera, Seshat lembra que o conhecimento é força primordial, selvagem e viva. Onde há uma pedra fundamental de templo, onde se ergue um novo mundo, ela está presente, traçando linhas invisíveis que sustentam a ordem da criação.
Como Neith, Ísis é a tecelã que cruza os fios do real, ordenando o invisível em padrões harmônicos. A imagem das duas setas cruzadas em sua coroa é mais que um símbolo de guerra: é a representação da trama universal, onde cada cruzamento gera sentido, destino e realidade. A criação não é um ato caótico, mas uma tapeçaria divina, e Neith segura em suas mãos o tear do mundo.
Na forma de Nut, Ísis se arqueia sobre o cosmos, engolindo o sol da tarde e parindo o sol da manhã. Ela é o céu estrelado que acolhe e nutre, a matriz infinita de onde brotam astros e ciclos. Em sua dualidade com Geb, o deus-terra, Nut revela o casamento eterno entre o visível e o invisível, o físico e o metafísico. É dela que surgem as constelações e os caminhos do além, pois nas tampas dos caixões e nas paredes dos túmulos, Nut aparece como a grande mãe que nutre os mortos com alimento eterno, oferecendo-lhes um renascimento para além do tempo.
Ísis tem também sua sombra em Néftis, a irmã-gêmea, o reflexo que mostra o outro lado da luz. Juntas, Ísis e Néftis guardam os corpos e as almas, a primeira com o poder da vida, a segunda com o poder da dissolução e da passagem. Assim, até mesmo a morte é um aspecto do princípio feminino, uma face que não deve ser temida, mas compreendida como parte da dança cíclica.
Ela é ainda Satet, a Mãe Tempo, aquela que faz descer as águas do Nilo e inaugura os anos novos, marcada pela estrela Sothis (Sírius), que anuncia a inundação e o renascimento da terra. É também Ta-urt, a grande mãe grávida, hipopótamo cósmico com seios fartos e patas de leão, a parteira suprema que acompanha cada nascimento humano e divino, lembrando que até os deuses precisam ser paridos.
Ísis é também Mut, a Mãe em sua essência pura, o próprio arquétipo do materno que atravessa línguas e culturas, de “mutt” no Egito ao “mater” latino e ao “mãe” português. Como Sekhmet, ela revela o fogo criador, a ferocidade da leoa que protege, destrói e regenera. Sua fúria não é caos, mas purificação ardente, necessária para que a vida não se corrompa.
Em contraste, como Bastet, Ísis é o gato doméstico, sereno, doce e protetor. Se Sekhmet é a chama que queima, Bastet é o calor suave que consola. Sua festa atraía multidões, e seus nove nomes se refletiam nas nove vidas do gato, símbolo da resiliência da alma.
Ela é Qadesh, a legitimidade, a herança sagrada que assegura a ordem dinástica e espiritual. É Heqet, o sapo que anuncia a fertilidade e o início dos ciclos, a explosão de vida nas margens do Nilo. É Serket, o escorpião que guarda e protege os filhos, veneno e cura ao mesmo tempo. É Anat, a guardiã das fronteiras, que ergue escudo e machado contra o caos externo.
E finalmente, em Hathor, Ísis se mostra como a matriz do amor, da música, da dança e da alegria. Het-Hor, a Casa de Hórus, é o útero cósmico onde a vida se alimenta de beleza e prazer. Nela, o princípio espiritual encontra repouso e nutrição, e o universo se lembra de que criar não é apenas sobreviver, mas também celebrar.
Vale a pena ressaltar que, embora as atribuições de Isis como Maat, Seshat, Neith, Nut, se dá devido ao periodo pós faraônico, onde Ísis passou a ser chamada de Pan-Deusa, sendo assim, uma divindade que absorveu funções de outras divindades. Esse sincretismo ocorreu tardiamente, embora seja muito utilizado nos misterios do Egito antigo à fora.
Conclusão: Assim é Ísis: múltipla e uma, materna e terrível, ordem e caos, ventre e sepulcro, leite e veneno. Seus dez mil nomes não são títulos, mas janelas para compreender que o princípio feminino cósmico é a própria trama da realidade. Conhecer Ísis é aprender a ler o universo como um corpo vivo, onde cada estrela é um seio, cada rio é um cordão umbilical, cada vida é uma centelha parida de sua eternidade.


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