Necromancia e o caminho das Mudang - Soror: Akane.


Necromancia e o caminho das Mudang

Introdução à Visão Coreana da Morte
A cultura coreana tem uma visão profundamente espiritual sobre a morte, fortemente influenciada pelo xamanismo, pelo confucionismo e pelo budismo. No centro dessa concepção está a interconexão entre Céu, Terra e Humanidade (Cheon, Ji, In), a natureza dual da alma (Hon e Baek), e o papel essencial dos ancestrais no mundo espiritual.
O Conceito de Cheon, Ji, In (Céu, Terra e Humanidade)
A cosmologia coreana se baseia na harmonia entre três forças primordiais:
Cheon (Céu): Representa o mundo espiritual e o destino. O Céu governa a ordem cósmica e influencia a vida e a morte.
Ji (Terra): É o domínio físico, onde os seres vivos existem e onde os ritos funerários ocorrem para facilitar a passagem da alma.
In (Humanidade): A conexão entre Céu e Terra, os humanos desempenham um papel ativo em manter a harmonia através de rituais e práticas espirituais.
Na morte, essa harmonia deve ser preservada para garantir uma transição adequada para o espírito.
A Alma: Hon e Baek Na tradição coreana, a alma de um indivíduo é composta por duas partes:
Hon (혼, 魂): A parte yang, associada ao Céu e à energia espiritual. Após a morte, ela ascende ao mundo espiritual.
Baek (백, 魄): A parte yin, ligada ao corpo físico e à Terra. Ela retorna ao solo após a morte.
Se os rituais adequados não forem realizados, o Hon pode permanecer preso entre os mundos, tornando-se um espírito errante (Gwisin).
O Papel dos Ancestrais e o Culto aos Mortos
O respeito pelos ancestrais é um dos pilares da espiritualidade coreana. Acredita-se que os espíritos dos antepassados permanecem ligados aos vivos, influenciando sua sorte e protegendo a família. Os rituais ancestrais (Jesa, 제사) garantem que os espíritos recebam oferendas e mantenham sua paz. Se um espírito for esquecido ou se os ritos forem negligenciados, ele pode se tornar vingativo e trazer má sorte à família. Essa visão da morte reflete um equilíbrio entre respeito pelos mortos e a necessidade de manter a ordem entre os mundos espiritual e material.
O Xamanismo Coreano e as Mudang
O xamanismo coreano (Muism ou Sindo) é uma das mais antigas tradições espirituais da Coreia, enraizada na crença de que o mundo está permeado por espíritos que influenciam a vida dos vivos. Dentro dessa tradição, as mudang (무당), as xamãs femininas, desempenham um papel central como mediadoras entre o mundo espiritual e os humanos. Seu conhecimento inclui comunicação com os mortos, rituais de purificação e até práticas de manipulação espiritual, algumas das quais envolvem o que se poderia chamar de magia negra.
Origem e Evolução das Mudang
A figura da mudang remonta aos tempos antigos da Coreia, muito antes da influência do budismo e do confucionismo. Inicialmente, essas xamãs eram líderes espirituais das comunidades, encarregadas de manter o equilíbrio entre os espíritos da natureza, os mortos e os vivos. Com o tempo, o confucionismo reduziu o papel público das mudang, empurrando suas práticas para a margem da sociedade. No entanto, o xamanismo nunca desapareceu, e muitas famílias coreanas ainda recorrem a essas sacerdotisas para resolver problemas espirituais, realizar rituais funerários e lidar com espíritos inquietos.
Relação das Mudang com os Espíritos e os Mortos
As mudang são especialistas na comunicação com os espíritos, especialmente por meio do gut (굿), um ritual xamânico onde a xamã entra em transe para interagir com os mortos e os deuses. Elas podem ajudar a guiar almas perdidas para o além, apaziguar espíritos vingativos (Gwisin, 귀신) ou até invocar os ancestrais para aconselhamento. A morte, no xamanismo coreano, não significa o fim da existência, mas uma transição para outra forma de ser. Cabe à mudang garantir que essa passagem aconteça corretamente.
Magia Negra e Controle de Almas
Embora o papel tradicional das mudang esteja associado à cura espiritual, à mediação entre vivos e mortos e à harmonia, há registros de práticas xamânicas sombrias dentro do Muism. Algumas mudang, seja por tradição, vingança ou contrato, utilizam ritos de magia negra (Heuk-su, 흑수 – “água negra”) para manipular espíritos e influenciar o destino de outras pessoas. Essas práticas envolvem maldições, dominação espiritual e até o controle de almas errantes.
Uma mudang treinada em práticas mais obscuras pode entrar em contato com esses espíritos, oferecendo-lhes oferendas e ritos para fortalecê-los e prendê-los ao seu serviço. Essas almas podem ser usadas para assombrar inimigos, causar azar ou até mesmo enfraquecer a vitalidade de uma pessoa. Em alguns casos, são mantidas presas por longos períodos, tornando-se uma espécie de servos espirituais da xamã.
Técnicas de Controle de Almas e Espíritos
As mudang que praticam magia negra usam diversos métodos para manipular as almas dos mortos. Algumas das técnicas mais conhecidas incluem:
Chamado do Espírito (영혼 부름, Yeonghon Bureum) – Um ritual onde a mudang invoca o espírito de uma pessoa falecida, muitas vezes utilizando objetos que pertenciam a ela, seu nome escrito em papel ou restos mortais. Esse espírito pode ser interrogado, persuadido ou coagido a realizar tarefas para a xamã.
Aprisionamento Espiritual (영혼 감금, Yeonghon Gamgeum) – Um método onde a mudang sela um espírito dentro de um objeto, como uma boneca, um amuleto ou até mesmo uma casa. Espíritos aprisionados podem ser usados para amaldiçoar locais ou indivíduos.
Maldição da Alma Perdida (혼령 저주, Honryeong Jeoju) – Ritual onde uma mudang utiliza um espírito errante para atormentar um alvo. O espírito é atraído para a vítima e sussurra em seus sonhos, causando insônia, azar e até doenças.
Uso de Espíritos para Vingança (원혼 복수, Wonhon Boksu) 

Quando uma pessoa busca vingança, uma mudang pode convocar o espírito de alguém injustiçado e direcionar sua fúria para um inimigo. Espíritos com forte rancor podem causar acidentes, ruína financeira ou até mesmo doenças súbitas na vítima.  Nem todas as mudang concordam com o uso dessas práticas. Muitas seguem um código espiritual rígido e evitam manipular os mortos, pois acreditam que essas ações desequilibram o gi (기, energia) do praticante e podem resultar em retaliação espiritual. Espíritos vingativos não são fáceis de controlar e podem se voltar contra a própria xamã.
No entanto, algumas mudang aceitam realizar rituais sombrios para clientes desesperados, cobrando altos valores por esses serviços. Outras, por linhagem ou tradição, carregam conhecimentos antigos sobre como subjugar espíritos sem se tornarem vítimas. Há diversas histórias sobre mudang que usaram espíritos para realizar vinganças ou manipular o destino de famílias inteiras. Algumas lendas falam de xamãs que controlavam Gwisin para assombrar aldeias inteiras, exigindo tributos para realizar exorcismos que elas mesmas haviam causado.
Em certos casos históricos, famílias influentes na Coreia contratavam mudang para lançar maldições sobre rivais políticos ou para afastar pretendentes indesejados. Os efeitos dessas práticas são temidos até hoje, e mesmo pessoas céticas costumam evitar cruzar o caminho de uma mudang conhecida por sua afinidade com o mundo dos mortos.
Rituais Funerários e Conexão com os Mortos no Xamanismo Coreano
A morte na cultura coreana não é vista como um fim absoluto, mas como uma transição para outro estado de existência. Os rituais funerários desempenham um papel crucial nesse processo, garantindo que o falecido encontre seu caminho no além e que sua relação com os vivos continue de forma harmoniosa. Dentro dessa tradição, três ritos são especialmente importantes: o Jesa, o Gut para espíritos inquietos e o Ssitgim-gut, um ritual de purificação da alma.

O Jesa: O Ritual Ancestral e Sua Importância Espiritual
O Jesa (제사) é um dos rituais mais importantes na tradição coreana, sendo realizado para honrar os antepassados e manter sua presença espiritual dentro da família.
Objetivo do Jesa
Prestar respeito aos ancestrais – Ele reforça a conexão entre os vivos e os mortos, garantindo que os espíritos continuem a proteger a família.
Evitar que os mortos se tornem espíritos errantes – Se os antepassados forem esquecidos, acredita-se que eles podem retornar como Gwisin (귀신), trazendo azar e desarmonia.
É celebrado anualmente no aniversário da morte do ancestral.
Uma mesa é preparada com comidas e bebidas que o falecido gostava.
Incensos e velas são acesos para chamar o espírito do ancestral.
A família se curva em reverência e oferece orações.
No final, os vivos compartilham a comida como uma forma de absorver a bênção do espírito.
Esse ritual mantém a ligação entre os mundos e reforça o papel dos ancestrais na vida cotidiana.

O Gut para Guiar Espíritos Inquietos
Quando uma pessoa morre de forma violenta, injusta ou sem os ritos apropriados, sua alma pode ficar presa no mundo dos vivos, tornando-se um espírito errante (Gwisin). Para evitar isso, as mudang realizam um Gut (굿), um ritual xamânico que ajuda o espírito a encontrar paz e seguir seu caminho.
A mudang entra em transe para se comunicar com o espírito.
O espírito é convencido a aceitar sua morte e seguir para o além.
Oferendas, músicas e danças são usadas para elevar sua energia e libertá-lo.
Em alguns casos, a família do falecido precisa pedir perdão ou resolver pendências para que o espírito aceite partir.
Se o ritual for bem-sucedido, o espírito deixa de assombrar os vivos e encontra descanso. Caso contrário, pode continuar a vagar e causar perturbações.

O Ssitgim-gut: Purificação da Alma do Falecido
O Ssitgim-gut (씻김굿) é um ritual específico para purificar a alma do falecido e garantir que ele possa entrar no mundo espiritual de forma limpa e sem arrependimentos.
Na visão xamânica coreana, a alma do falecido pode carregar impurezas espirituais, como remorsos, tristezas e traumas de vida. Se essas impurezas não forem purificadas, a alma pode não conseguir atravessar corretamente para o além, tornando-se um Gwisin.
Como o Ssitgim-gut é realizado?
1. A mudang canta e dança para chamar o espírito do falecido.
2. Água e panos brancos são usados simbolicamente para lavar a alma.
3. Orações e mantras são entoados para remover energias negativas.
4. A família pode participar, expressando despedidas e pedidos de perdão.
Esse ritual é essencial para garantir que o falecido siga em paz e que os vivos não carreguem a culpa ou o peso da sua morte.
Espíritos Errantes e Necromancia na Tradição Coreana
Na cultura coreana, a morte nem sempre significa o fim da interação entre os vivos e os mortos. Alguns espíritos permanecem presos ao mundo material, tornando-se Gwisin (귀신), almas errantes que podem influenciar a vida dos vivos. O papel das mudang (xamãs) é essencial na comunicação com esses espíritos, seja para ajudá-los a encontrar paz ou para enfrentá-los quando se tornam perigosos, como no caso dos Wonhon (원혼), espíritos vingativos.

Cheonyeo Gwisin (처녀 귀신) – Espíritos de mulheres que morreram solteiras, muitas vezes descritas com cabelos longos cobrindo o rosto e vestes brancas.
Jeoseung Saja (저승사자) – Ceifadores espirituais encarregados de guiar as almas para o além.
Mulgwishin (물귀신) – Espíritos de pessoas afogadas, que puxam outros para o fundo da água.
Esses fantasmas podem causar azar, doenças e pesadelos para aqueles que entram em contato com eles. Na tradição espiritual coreana, a jornada da alma após a morte é guiada pelo temido Yeomna Daewang (염라대왕), o Senhor da Morte, uma figura equivalente a Hades na mitologia ocidental. Ele é o principal juiz do submundo e comanda os Dez Reis do Submundo (Siwang, 시왕), que determinam o destino das almas com base em seus feitos em vida.
O Senhor da Morte (Yeomna Daewang) e os Dez Reis do Submundo
Yeomna Daewang governa o submundo e julga as almas com registros detalhados de suas ações em vida.
Os Dez Reis do Submundo presidem diferentes tribunais espirituais, decidindo se a alma será enviada ao renascimento, ao paraíso ou ao inferno (Jiok, 지옥).
Dependendo do julgamento, a alma pode enfrentar punições, purificações ou reencarnação.

Após a morte, a alma embarca em uma jornada espiritual:
1. A alma é guiada por mensageiros espirituais (Jeoseung Saja, 저승사자), que a levam ao submundo.
2. No tribunal, a vida do falecido é revisada, e suas boas e más ações são pesadas.
3. Se for julgada como virtuosa, pode renascer em uma vida melhor ou ascender ao reino celestial.
4. Se tiver más ações, pode ser enviada a punições específicas antes da reencarnação.
Esse julgamento pode durar até 49 dias, período durante o qual a família pode realizar rituais para auxiliar a alma.
Práticas Modernas e Integração da Necromancia Coreana
Nos tempos modernos, as mudang continuam a desempenhar um papel espiritual relevante na Coreia do Sul, mesmo com a crescente urbanização e a influência de religiões como o cristianismo e o budismo. Embora muitas práticas xamânicas tenham sido reinterpretadas, a conexão com os mortos ainda é um aspecto fundamental do Muism (xamanismo coreano).
A Influência das Mudang nos Dias de Hoje
Consultas espirituais e rituais funerários – Muitas pessoas ainda procuram mudang para se comunicar com entes falecidos, resolver problemas espirituais e realizar rituais de despedida para garantir a paz das almas.
Exorcismos e purificação de espíritos – Em casos de azar persistente ou manifestações sobrenaturais, as mudang são chamadas para expulsar Gwisin (espíritos errantes) e restaurar o equilíbrio energético.
Ritos de proteção e prosperidade – Além da necromancia, as mudang realizam rituais para trazer sucesso financeiro, saúde e harmonia familiar, usando oferendas e cantos tradicionais.

A Necromancia Coreana na Atualidade
Mesmo com a modernização, práticas de necromancia ainda são preservadas, especialmente nas zonas rurais e entre aqueles que mantêm uma forte ligação com as tradições ancestrais. Algumas adaptações modernas incluem:
O uso de tecnologia para consultas espirituais à distância.
A incorporação de práticas xamânicas em cerimônias empresariais e eventos políticos.
A reinterpretação do Gut para eventos culturais e artísticos.
Embora haja ceticismo, o respeito pelas mudang ainda é forte, e muitas pessoas, mesmo de forma discreta, continuam buscando sua orientação para lidar com o mundo dos mortos e os mistérios da vida espiritual.


 

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