Os Deuses Infernais e os Círculos de Yomi - Mestra: Akane.


Introdução ao Yomi no Kuni (黄泉の国)

Bem-vindos, praticantes. Hoje iniciaremos nossa jornada pelos caminhos sombrios da necromancia japonesa, começando pelo coração do submundo nipônico: Yomi no Kuni.

O Conceito de Yomi no Kuni na Mitologia Japonesa

Yomi no Kuni, literalmente "Terra do Amarelo", é o nome dado ao submundo na mitologia japonesa. Ele é descrito no Kojiki — uma das mais antigas crônicas do Japão — como o lugar para onde vão as almas dos mortos. Não é exatamente um local de punição, como o inferno cristão, mas sim um plano sombrio e silencioso onde reina a estagnação e a separação do mundo dos vivos.

Yomi é uma terra de sombras, onde a vida se desfaz lentamente. Lá, os mortos perdem sua identidade, sua voz e sua luz. A morte, aqui, é a desconexão completa com o "Kami no Sekai", o mundo dos deuses e dos vivos. É a terra do esquecimento.

Diferença entre Yomi e Jigoku (Inferno Budista)

É muito importante diferenciar Yomi, que tem raízes xintoístas, de Jigoku, o inferno budista introduzido no Japão com a chegada do budismo.

Yomi é uma terra silenciosa e sombria, mais associada à ausência de purificação do corpo e à deterioração espiritual. É uma continuidade da morte, não uma punição.

Jigoku, por outro lado, é um local de julgamento e punição, governado por Emma-Ō (o Rei Enma). Lá, as almas sofrem por seus pecados em níveis de tortura simbólica e espiritual, semelhante ao conceito de “inferno” no ocidente.

Enquanto Jigoku é moral e jurídico, Yomi é existencial — a consequência natural da morte física e espiritual.

Simbologia da Escuridão, Podridão e Silêncio Eterno

Yomi é descrito como um local de decomposição e escuridão densa. Um símbolo poderoso desse aspecto é o corpo de Izanami-no-Mikoto, que se transforma em uma entidade putrefata e aterradora após consumir os alimentos do submundo. Quando Izanagi, seu marido, tenta resgatá-la, ele a vê em estado de decomposição, cercada por espíritos pestilentos e vermes.

Essa imagem nos revela que, uma vez que se cruza o limiar de Yomi, não há mais retorno puro: o corpo já pertence à morte, e a alma mergulha no silêncio eterno.

A escuridão representa o desconhecido e a ausência de luz divina.

A podridão simboliza a corrupção do corpo e a dissolução da identidade.

O silêncio eterno indica o desligamento da alma com o mundo dos vivos e com os próprios deuses.

A Jornada da Alma Após a Morte (Segundo o Xintoísmo Arcaico)

No xintoísmo antigo, acreditava-se que após a morte, a alma do falecido viajava até Yomi. Essa travessia era feita por um caminho escondido nas montanhas, muitas vezes relacionado ao mundo subterrâneo.

Diferente das crenças que associam a morte a um julgamento imediato, o xintoísmo via a alma como impura, necessitando ser separada do mundo dos vivos para evitar contaminação espiritual. É por isso que existem tantos rituais de purificação (harae) para os vivos em luto.

Entrar em Yomi era atravessar um limiar sagrado e sombrio. Esse limiar, representado em muitos rituais por um portão ou passagem de pedra, é um ponto de transição entre os mundos. Uma vez lá, a alma se funde à obscuridade, a não ser que algum ritual específico a invoque de volta ou a eleve.

Essa compreensão do Yomi no Kuni é fundamental para qualquer necromante japonês. É a base sobre a qual edificamos rituais, invocações e nossa conexão com os mortos. Na próxima seção, vamos nos aprofundar nos deuses que reinam nesse mundo sombrio — os Yomi no Kami.


Os Juízes Infernais e os 49 Dias de Julgamento

Após a morte, acredita-se que a alma passa por um processo espiritual conhecido como Shijūkunichi (四十九日) — os 49 dias de transição entre o mundo dos vivos e o destino final da alma. Durante esse tempo, a alma atravessa julgamentos em diferentes níveis do inferno (Jigoku), sob a supervisão de dez juízes infernais, conhecidos como os Jūō (十王).

 Quem são os Dez Juízes (Jūō)?

Cada um desses juízes governa um tribunal do submundo e julga as ações da alma durante a vida. A cada sete dias após a morte, um novo juiz assume o julgamento, até que no 49º dia o destino final da alma é decidido.

Aqui estão os principais juízes e seus respectivos dias:

Dia após a morte Juiz Infernal Nome Japonês Função

7º dia Rei Shinkō 初江王 (Shōzō-Ō) Primeiro julgamento. Examina atos básicos de bondade e maldade.

14º dia Rei Shokō 二江王 (Shokō-Ō) Julga os atos cometidos por palavras e pensamentos.

21º dia Rei Sōtei 三江王 (Sōtei-Ō) Julga os relacionamentos familiares e obrigações sociais.

28º dia Rei Gokan 四江王 (Gokan-Ō) Julga os crimes e faltas graves.

35º dia Rei Enma 閻魔王 (Emma-Ō) O juiz supremo. Avalia todo o karma acumulado.

42º dia Rei Henjō 六江王 (Henjō-Ō) Decide se a alma irá renascer no mundo humano ou nos reinos inferiores.

49º dia Rei Taizan 泰山王 (Taizan-Ō) Emite a sentença final. Decide o destino da alma.

Após 100 dias Rei Byōdō 平等王 (Byōdō-Ō) Reexame kármico. Preparação para renascimentos elevados.

Após 1 ano Rei Tentei 都市王 (Tentei-Ō) Revisão após renascimento.

Após 3 anos Rei Gōsan 五道転輪王 (Gōsan-Ō) Liberação do ciclo ou selamento cármico eterno.

Importante: Os 49 dias são considerados o período mais crítico da alma, onde familiares realizam rituais de oração, oferendas e leitura de sutras para aliviar o karma do falecido e facilitar sua passagem para um destino mais elevado.

Os Círculos Infernais: Julgamento e Purificação

Embora o conceito de "círculos infernais" seja mais típico do budismo tibetano e chinês, o Japão adotou uma versão própria, influenciada pelo Sutra de Kṣitigarbha (Jizō Bosatsu).

Os reinos infernais são chamados de Narakas (地獄 – Jigoku), e existem oito infernos quentes e oito infernos gelados, além de inúmeros subníveis. O karma da alma determina para qual inferno ela poderá ser enviada, caso os juízes assim decidam.

Os Oito Infernos Quentes e Gelados

A ideia de 8 infernos quentes e 8 gelados aparece no Kusha-ron (俱舎論), uma obra budista que foi muito influente no Japão. A partir disso, a cosmologia japonesa adaptou os seguintes reinos:

Os Oito Infernos Quentes – 熱地獄 (Netsu Jigoku)

1. Tōkatsu Jigoku (等活地獄) — Inferno da Matança Mútua

Punição: Os pecadores são obrigados a se matar repetidamente com armas flamejantes. Sempre que morrem, são revividos para continuar o ciclo.

Ambiente: Um campo de batalha em chamas, cheio de gritos, ossos quebrados e sangue incandescente.

Pecados julgados: Assassinato, violência gratuita, ódio cego, brutalidade deliberada.

2. Koku Jō Jigoku (黒縄地獄) — Inferno das Cordas Negras

Punição: Oni usam cordas negras para marcar linhas sobre o corpo dos pecadores, e cortam com lâminas incandescentes seguindo essas marcas.

Ambiente: Um chão de ferro em brasa onde as vítimas são estendidas como sacrifícios.

Pecados julgados: Engano, falsidade, calúnia, traição com palavras.

3. Shūgō Jigoku (衆合地獄) — Inferno dos Sofrimentos Coletivos

Punição: Os pecadores são esmagados em montanhas de corpos, atingidos por pedras flamejantes e chamas que caem dos céus.

Ambiente: Caos coletivo e claustrofobia, onde não se pode fugir nem respirar.

Pecados julgados: Corrupção em grupo, crimes cometidos em conluio, manipulação de massas.

4. Shōnetsu Jigoku (焼熱地獄) — Inferno do Fogo Ardente

Punição: O corpo explode em chamas de dentro para fora, queimando a alma sem jamais destruí-la.

Ambiente: Uma caverna ardente onde o próprio ar incendeia os pulmões.

Pecados julgados: Luxúria incontrolável, sedução destrutiva, promiscuidade que causa sofrimento.

5. Dai-Shōnetsu Jigoku (大焼熱地獄) — Inferno do Grande Fogo

Punição: Sem pausa, os corpos são fundidos com metal derretido, enquanto chamas negras consomem os ossos e órgãos.

Ambiente: Um oceano de fogo onde as almas boiam como carvão.

Pecados julgados: Traições passionais, adultério, desejo obsessivo que destrói lares e vidas.

6. Abura Jigoku (油地獄) — Inferno do Óleo Fervente

Punição: Espíritos são jogados em caldeirões de óleo fervente, sendo fritos lentamente enquanto oni mexem com enormes pás.

Ambiente: Cozinhas infernais cheias de gritos e vapores tóxicos.

Pecados julgados: Exploração dos fracos, ganância descontrolada, corrupção ligada ao dinheiro e ao luxo.

7. Kaiten Jigoku (回転地獄) — Inferno das Rodas Giratórias

Punição: Os condenados são presos em grandes rodas flamejantes que giram eternamente, esmagando e despedaçando seus corpos.

Ambiente: Montanhas de engrenagens demoníacas que rangem e gritam.

Pecados julgados: Hipocrisia religiosa, manipulação espiritual, falsos mestres.

8. Avīci Jigoku (無間地獄) — Inferno Sem Intervalo / Inferno Incessante

Punição: O mais profundo e terrível de todos — sem pausas, sem reencarnação, sem esquecimento, a dor é constante.

Ambiente: Um buraco negro e flamejante onde o tempo é uma ilusão e o sofrimento é eterno.

Pecados julgados: Crimes hediondos como assassinato de pais, mestres, monges, destruição de templos ou causação de sofrimento extremo com intenção. 


Os Oito Infernos Gelados (寒地獄 — Kan Jigoku)

Cada um dos infernos representa um tipo específico de sofrimento causado pelo frio, e o karma de uma alma determina qual destes reinos ela pode visitar. A dor vem do congelamento, da solidão absoluta, da pele rachada e da destruição lenta dos sentidos.

1. Aruka Jigoku (頞哩婆 ) — Inferno dos Lamentos Gelados

Os condenados sentem frio tão intenso que seus lábios e bocas congelam, e a única coisa que conseguem fazer é chorar e gemer.

Sofrem uma solidão extrema, sem ver ninguém ao redor, como se estivessem presos em um deserto de gelo escuro.

2. Nirarbuda Jigoku (泥梨婆 ) — Inferno das Bolhas de Gelo

A pele dos espíritos se cobre de bolhas geladas que explodem com o toque do vento.

Eles sofrem como se estivessem sendo lentamente queimados pelo frio — um paradoxo gélido.

3. Atata Jigoku (阿吒 ) — Inferno dos Dentes Estilhaçados

O frio é tão intenso que os dentes dos pecadores racham e estouram em pedaços, e eles são incapazes de falar.

Apenas gritos de dor e os estalos do gelo podem ser ouvidos neste plano.

4. Hahava Jigoku (波波 ) — Inferno do Choro Tremeluzente

Os condenados tremem incessantemente. Seus ossos batem uns contra os outros, causando fraturas dolorosas.

São cegos pelo frio e caem repetidamente em abismos congelados.

5. Huhuva Jigoku (呵呵) — Inferno do Riso de Escárnio

Um reino de escárnio e zombaria, onde os espíritos que riram do sofrimento alheio em vida agora são zombados por espectros congelantes.

O som do riso se mistura ao vento cortante, causando terror e confusão.

6. Utpala Jigoku (優鉢羅) — Inferno dos Lótus Congelados Azuis

O frio faz flores de gelo azuis (lótus) brotarem da pele dos espíritos, cada uma sendo um ponto de dor extrema.

É uma punição para os que esconderam sua verdadeira face — suas “flores” revelam suas transgressões.

7. Padma Jigoku (鉢特摩) — Inferno dos Lótus Vermelhos

O frio queima como brasas congelantes. Lótus vermelhos surgem das articulações, estourando pele e carne.

Refere-se àqueles que traíram amigos e parentes com palavras doces — os lótus representam suas mentiras floridas.

8. Kumuda Jigoku (拘物) — Inferno dos Lótus Roxos

O mais profundo dos infernos gelados.

Os espíritos são selados em blocos de gelo púrpura, conscientes, mas imóveis por eras incontáveis.

Este é reservado àqueles que violaram os laços sagrados, como templos, mestres e divindades.

Como os círculos podem ser acessados em rituais de necromancia

Em práticas necromânticas, os círculos podem ser acessados simbolicamente em estados alterados de consciência (transe, meditação guiada, uso de selos e mantras). Cada círculo pode ser visualizado como uma camada energética:

Através de mandalas, espelhos negros, invocações aos juízes ou portais rituais (mon), o praticante entra em contato com almas presas, mensagens do além ou sabedorias esquecidas.

Ao mapear o karma da alma evocada, é possível dialogar, libertar, ou redirecionar sua energia.

Simbolismo dos oito portões de Yomi (黄泉の八門 – Yomi no Hachimon)

Os Oito Portões representam as etapas de transição entre o mundo dos vivos e o submundo. Cada portão simboliza um aspecto da dissolução do ego:

1. Portão da Carne – desapego do corpo físico

2. Portão do Sangue – purificação do sofrimento

3. Portão do Silêncio – abandono da palavra

4. Portão da Escuridão – entrada no desconhecido

5. Portão da Memória – esquecimento do mundo

6. Portão do Karma – revelação das ações

7. Portão do Julgamento – confronto com Emma-Ō

8. Portão da Verdade – destino final da alma

Ritualmente, podem ser usados como estágios em uma invocação ou jornada espiritual, onde cada portão é uma trava aberta com selos, palavras sagradas e oferendas específicas.

Os Deuses do Submundo

◾ Izanami-no-Mikoto – A Deusa Morta e Rainha do Yomi

Izanami foi a criadora do mundo junto a Izanagi. Porém, ao morrer ao dar à luz ao deus do fogo, ela desceu ao Yomi — o mundo dos mortos — e ali se tornou sua rainha sombria. Quando Izanagi tentou resgatá-la, ele quebrou o tabu de olhar para os mortos, vendo seu corpo em decomposição. Izanami, humilhada e irada, lançou sobre ele a maldição da morte, tornando inevitável o fim da vida para todos os seres.

◾ Emma-Ō (Enma Daiō) – O Grande Juiz do Submundo

Figura vinda do budismo, Emma-Ō é o senhor do inferno (Jigoku) e julga as almas com severidade. Ele consulta o Espelho do Karma (Jōharami no Kagami) para decidir o destino pós-morte: reencarnação, castigo ou purificação. É o sincretismo entre a função moral budista e o papel de um kami severo dentro do sistema espiritual japonês.

◾ Datsueba & Ken’eō – Os Guardiões das Almas

Na margem do rio Sanzu — equivalente ao Estige japonês — as almas dos mortos encontram Datsueba, a velha que arranca as roupas das almas, e Ken’eō, que pesa essas roupas encharcadas com o peso dos pecados. Eles simbolizam a passagem da alma da ilusão para o julgamento, despindo-a da identidade terrena.

◾ Shinigami – Espíritos da Morte

Os Shinigami não são deuses formais, mas entidades obscuras que guiam ou induzem os vivos à morte. Algumas tradições os tratam como yokai, outras como manifestações do karma. Podem aparecer como sombras, vultos ou mesmo como mensageiros de Emma-Ō. Em rituais necromânticos, invocar um Shinigami pode significar acessar o limiar entre mundos.

◾ Comparação: Kami Infernais × Yōkai Necromânticos

Kami Infernais: Entidades divinas com autoridade, ligados ao sistema espiritual e cosmológico. São como governantes, juízes ou guardiões (ex: Emma-Ō, Izanami, Datsueba).

Yōkai Necromânticos: Espíritos errantes, amaldiçoados ou deformados. Incluem fantasmas vingativos (onryō), mortos-vivos, ou seres ligados ao medo da decomposição. Eles vagueiam fora do sistema de julgamento, buscando desequilíbrio.


 Bastões de ossos, sinos silenciosos e caligrafia com tinta de cinzas

Bastões de ossos (geralmente simbólicos, esculpidos em madeira ou osso verdadeiro) são usados como condutores espirituais, canalizando a energia dos mortos ou abrindo caminhos no plano astral.

Sinos silenciosos são objetos ritualísticos que, embora não emitam som físico, são usados para marcar presença espiritual e convocar entidades em planos sutis. Seu toque ressoa no invisível.

Caligrafia com tinta de cinzas — feita com cinzas de incenso ritual ou papel funerário queimado — é usada para escrever nomes, selos ou mantras destinados a invocar, amarrar ou apaziguar os mortos. Cada traço carrega a vibração do mundo além.

Consequências e Códigos Éticos da Necromancia

Desequilíbrios energéticos e karmas da manipulação dos mortos

Toda prática necromântica move o fluxo da energia da morte, e isso jamais é neutro. Manipular os mortos sem propósito justo pode gerar:

Desequilíbrio no praticante (pesadelos, fraqueza espiritual, obsessões);

Contaminação energética do ambiente, caso o rito não seja encerrado adequadamente;

Karma espiritual por perturbar almas que deveriam estar em repouso.

Em tradições japonesas, interagir com o Yomi é como caminhar em um campo de cinzas quentes: é possível sair ileso, mas é preciso sabedoria. O necromante deve manter um coração puro, intenção clara e nunca agir por ego ou vingança.


Quando não fazer: os limites do praticante em relação à morte e os mortos

A necromancia não é um caminho para todos os momentos ou para todas as perguntas. Deve ser evitada:

Em estados emocionais instáveis (luto recente, raiva, desespero);

Quando a alma evocada é conhecida e há envolvimento pessoal intenso;

Sem a devida preparação de proteção, oferendas e encerramento;

Quando os sinais espirituais indicam que o véu está fechado (sensação de peso, espelhos escurecendo, silêncio opressivo).

A ética da necromancia japonesa ensina que o praticante é um mediador, não um dominador. A morte é sagrada. Os mortos têm voz. E o silêncio deles também deve ser ouvido.

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