O Ventre da Noite — O Véu e a Faca - Soror: Akane.

 


A Senhora do Submundo: Quem é Ereshkigal?

“Na escuridão mais profunda do Kur, onde nem a luz dos deuses penetra, senta-se Ereshkigal — a Senhora da Terra Sem Retorno. Ela não ruge, não seduz, não consola. Ela observa. Espera. E transforma.”

Ereshkigal: Deusa da Morte, Dor, Silêncio e Poder Oculto

Ereshkigal, cujo nome pode ser traduzido como “Rainha da Grande Terra Inferior”, é a deusa suméria do Submundo, governando sobre os mortos, os ritos de passagem, a dor e os limites do destino. Ela é irmã de Inanna, a deusa do céu e da vida. Enquanto Inanna representa o brilho da existência e da fertilidade, Ereshkigal representa o limiar, o portal entre os mundos, o destino inevitável de toda vida: a morte.

Ela não é maligna — mas é inexorável. Seu poder não está na destruição caótica, mas no controle absoluto do ciclo de encerramento, na sabedoria daquilo que precisa morrer para algo novo surgir.

O Submundo Sumério: Kur ou Irkalla

O Kur (ou Irkalla) é o Submundo sumério, também chamado de “Terra Sem Retorno”. É um lugar árido, escuro e silencioso, onde as almas vagam como sombras pálidas, privadas de oferendas e do calor divino. Ao contrário do inferno cristão, o Kur não é punição — é simplesmente o domínio da realidade final, a morte como parte do todo.

Kur não é apenas geográfico — é arquetípico. É o lugar da iniciação sombria, onde se perde tudo para encontrar o verdadeiro eu. É nesse cenário que Inanna desce e é despojada de todos os seus poderes até ser confrontada por Ereshkigal.

Ereshkigal e Namtar: A Deusa e o Arauto da Morte

Namtar é o arauto de Ereshkigal — um espírito sombrio associado ao destino, à doença e à execução das ordens da Rainha do Submundo. Ele não age por vontade própria, mas é a extensão da palavra de Ereshkigal.

Enquanto Ereshkigal permanece silenciosa, poderosa e imóvel em seu trono, Namtar percorre o mundo levando suas maldições ou ordens. Ele é o mensageiro da morte, mas não seu autor. Ele representa a inevitabilidade do que foi decretado.

Na mitologia da Descida de Inanna, é Namtar quem apresenta Inanna aos julgamentos do Submundo, quem a prende, e quem, mais tarde, liberta seu corpo quando a misericórdia é concedida.

Em práticas mágicas contemporâneas, Ereshkigal é invocada por aqueles que não temem a escuridão — mas que nela reconhecem um espelho, uma porta e um útero simbólico. Sua presença é sentida nos momentos em que tudo desmorona, quando as máscaras caem e a alma é obrigada a confrontar sua verdade mais crua. Não é uma deusa de consolo fácil. Seu poder se revela no silêncio absoluto, na dor que desnuda, na morte simbólica que antecede o renascimento.

Bruxas e ocultistas recorrem a Ereshkigal quando precisam se libertar de traumas profundos, dores enraizadas na linhagem ancestral ou lutos não resolvidos. Sua energia atua como uma lâmina afiada, cortando os laços que mantêm o espírito preso ao passado. Não se trata de esquecer ou apagar, mas de aceitar, acolher e transformar. Com ela, a dor deixa de ser um fardo e se torna uma chave.

Entre mulheres, Ereshkigal é especialmente reverenciada como a senhora da sombra interior. Diferente de deusas que representam a beleza, o amor ou a fertilidade, ela representa o poder que nasce da perda, da raiva contida, da rejeição e da vergonha. Ela ensina que há força no abandono, que há soberania na queda, e que existe realeza no ventre vazio da noite. Conectar-se com ela é um ato de coragem espiritual, pois significa olhar para si sem adornos, sem ilusões, sem medo.

Na necromancia e nas práticas espirituais voltadas ao Submundo, Ereshkigal é a guardiã entre os mundos. Não se passa por suas fronteiras impunemente. Rituais que buscam contato com os mortos, com os ancestrais ou com os mistérios da alma requerem sua permissão — e sua presença impõe respeito. Ela é o crivo entre o desejo e o sagrado, entre a curiosidade e a sabedoria.

Invocar Ereshkigal é aceitar descer. É permitir-se morrer simbolicamente, perder o que não serve mais, encarar a própria ruína e, do meio dela, emergir transformada. Ela não fala com doçura, mas com verdade. Sua voz não é som, mas silêncio. E neste silêncio, tudo que é falso se desfaz — até que reste apenas o eco verdadeiro da alma.

A Descida de Inanna: O Mito como Rito de Passagem

A descida de Inanna ao Submundo é mais do que um mito antigo — é um poderoso rito de passagem que simboliza a morte do ego e a jornada inevitável da alma feminina rumo à verdade interior. Ao atravessar os sete portões, Inanna é despida de todos os seus títulos, adornos e poderes, até chegar nua diante de Ereshkigal, a Rainha do Submundo. Nesse encontro, a ilusão se dissolve e apenas a essência permanece. Ereshkigal, com seu olhar implacável, não pune — ela revela. Como iniciadora sombria, ela devora tudo que é construído sobre vaidade, orgulho ou controle, permitindo que o renascimento só ocorra após o confronto com a sombra. É um processo de alquimia espiritual: morrer para si, para então se tornar inteira.


Magia do Luto, da Perda e da Morte

A magia do luto, da perda e da morte ocupa um lugar central nas tradições ocultistas ligadas ao Submundo, e Ereshkigal, como deusa suméria da terra sem retorno, representa a face feminina que acolhe, transforma e transita entre mundos. Em práticas mágicas contemporâneas, especialmente na bruxaria de linhagem sombria e no caminho da necromancia ritualística, ela é evocada como psicopompa — uma guia espiritual que conduz a alma através das trevas internas e externas, permitindo a liberação de vínculos adoecidos e dores ancestrais não transmutadas. Rituais em sua honra utilizam elementos profundamente pessoais, como cabelo, unhas, tecidos usados e sangue menstrual ou simbólico, por conterem a memória viva do corpo e da alma. Esses fragmentos são oferecidos como marcas da entrega e da libertação.

A prática de magia com esses materiais é reconhecida em obras como “The Witches’ Book of the Dead” de Christian Day, onde o autor explora o uso de relíquias corporais como ferramentas de ligação entre vivos e mortos. Em “Of Blood and Bones” de Kate Freuler, há instruções detalhadas sobre o uso ritual de itens corporais como forma de trabalhar com a morte simbólica e real, além de sugerir práticas de luto mágico como purificação e transformação. No contexto de Ereshkigal, esses ritos não visam evitar a dor, mas atravessá-la como uma ponte para o renascimento espiritual. A evocação dessa deusa em tais rituais carrega o propósito de dar nome e corpo às perdas esquecidas, acolher lutos não elaborados e oferecer um caminho de retorno à inteireza — não pela cura superficial, mas pela imersão corajosa no abismo.

As Filhas da Noite: Bruxaria Sombria com Ereshkigal

Na tradição da bruxaria sombria, invocar Ereshkigal é convocar a força arquetípica do feminino que habita o silêncio, o luto e a morte — não como fim, mas como travessia. As chamadas "Filhas da Noite" são aquelas que reconhecem sua linhagem ancestral não apenas em seus nomes familiares, mas no sangue que carrega memórias, no inconsciente que pulsa com vozes esquecidas, e nos ossos espirituais que ainda guardam histórias não contadas. Trabalhar com Ereshkigal é mergulhar nesse espaço escuro e fértil, onde a conexão com os mortos se dá não por medo ou curiosidade, mas por reverência e transformação.

A magia com os mortos, nesse contexto, envolve ritos silenciosos, oferendas noturnas, uso de terra de cemitério, objetos de herança e elementos como ossos simbólicos, velas negras e orações sussurradas. A ancestralidade é honrada não apenas com flores e altares, mas com a disposição de herdar a dor e transmutá-la em força.

Nos trabalhos de proteção com a sombra, Ereshkigal ensina que aquilo que nos ameaça de fora muitas vezes é espelho do que negamos dentro. Em vez de repelir com luz, suas filhas abraçam a escuridão e a usam como manto. Feitiços de proteção com sua energia costumam envolver símbolos de decomposição e renascimento — como serpentes, espelhos negros e cinzas — e invocações feitas em portais astrais de liminaridade, como os momentos entre a noite e o dia, ou entre a Lua Minguante e a Lua Nova.

Obras como “Initiation in the Dark Goddess Mysteries” de Jane Meredith e “Walking the Twilight Path” de Michelle Belanger oferecem fundamentos práticos e rituais para esse tipo de trabalho, reforçando a ideia de que Ereshkigal não entrega proteção como uma muralha, mas como espelho: aquele que enxerga, aceita e se alia à própria sombra, torna-se intocável.

Ereshkigal, Lilith e a Fúria Feminina Primal

Ereshkigal e Lilith são faces distintas, mas complementares, da fúria feminina ancestral — uma fúria que não nasce do caos gratuito, mas da dor ignorada, da repressão histórica, do silêncio imposto. Ambas representam o grito não contido da mulher que foi excluída, humilhada, aprisionada em papéis passivos — e que agora retorna, não para ser aceita, mas para tomar o trono. Ereshkigal, no Submundo, grita em trabalho de parto ao mesmo tempo em que julga os mortos; Lilith, na escuridão do deserto, recusa-se a curvar-se a Adão e escolhe ser temida em vez de ser subjugada. Elas choram, sangram, rugem — mas também ordenam, governam e encantam.

Essa dor que virou poder se transforma, na bruxaria contemporânea, em magia de libertação sexual e vingança espiritual. Os rituais que envolvem essas deusas muitas vezes partem daquilo que foi negado: prazer, voz, escolha, autonomia. A magia sexual aqui não é sedução — é libertação. A mulher que se consagra a Lilith ou a Ereshkigal escolhe o próprio corpo como templo e arma, devolve a si mesma o direito ao desejo, à expressão, ao grito.

A vingança espiritual não é violência cega: é justiça arquetípica. É o retorno do que foi tomado. São feitiços feitos para quebrar pactos abusivos, encerrar ciclos de opressão, dissolver humilhações impregnadas no campo energético. Sangue menstrual, espelhos negros, vinho escuro, serpentes, preces noturnas e palavras de poder são elementos comuns nesses ritos, muitas vezes executados em Lua Negra, em silêncio absoluto ou sob gritos rituais.

Em “Dark Goddess Craft” de Stephanie Woodfield e “Lilith: Healing the Wild” de Kelly Hunter, encontramos reflexões e práticas que unem essas deusas à jornada da mulher que desperta e se recusa a continuar negando sua fúria — transformando-a em um fogo que cura, rompe e reconstrói. É nesse fogo que a bruxa que sangra, ruge e se ergue encontra não apenas sua força, mas sua soberania.

A Ascensão Após o Abismo: Renascimento com a Deusa Negra

A ascensão após o abismo é o momento em que a mulher que desceu ao Submundo, enfrentou sua dor, perdeu tudo que era ilusão — retorna. Mas ela não volta como antes. Ela carrega agora a noite dentro de si, não como um peso, mas como um trono. Integrar a sabedoria de Ereshkigal no cotidiano não significa viver em luto eterno, mas aprender a caminhar com a sombra como aliada. É saber silenciar quando necessário, dizer “não” com firmeza, e reconhecer a beleza no fim das coisas tanto quanto no seu florescer.

Essa integração se manifesta em pequenas escolhas: o corte de um vínculo tóxico sem culpa, o reconhecimento de uma verdade interior mesmo quando ela é incômoda, o uso ritual da intuição para guiar decisões. A mulher que renasce com Ereshkigal entende que sua força não depende de validação externa — ela é construída na escuridão, em rituais solitários, nos silêncios pesados que transformam.

Na prática da bruxaria viva, essa mulher se torna espelho para outras, conduzindo com firmeza, não porque tudo está claro, mas porque já caminhou na escuridão. Ereshkigal torna-se uma conselheira interna, evocada em momentos de dúvida, dor ou escolhas difíceis. Não responde com doçura — mas com clareza. Suas respostas vêm como pressentimentos firmes, sonhos reveladores ou aquele incômodo interior que recusa ser ignorado.

Trabalhar com ela após a descida é manter um altar silencioso dentro de si — onde tudo que morre volta, sim, mas transformado. Esse é o verdadeiro renascimento: não voltar a ser quem era, mas tornar-se o que a dor revelou.


E no fim da descida, quando já não restam adornos, nomes ou ilusões, a alma encontra Ereshkigal — não como inimiga, mas como reflexo. Ela não fala, mas tudo nela responde: o sangue pulsa, os ossos lembram, a pele estremece. A Deusa Negra não te oferece um caminho de volta, mas te entrega a chave para abrir um outro — aquele que só existe para quem já morreu por dentro e ousou renascer.

Ser tocada por Ereshkigal é como sonhar com a própria morte e acordar com olhos que nunca mais verão o mundo da mesma forma. É dançar nua com os próprios fantasmas, coroar-se com cicatrizes, fazer do ventre um templo e da dor, um fogo que ilumina de dentro para fora.

Quem caminha com ela carrega a noite como um véu e o silêncio como uma lâmina. Não precisa gritar — sua presença já cala.

Porque há uma bruxa que vive depois da queda.

E ela reina entre mundos.



Fonte:

“Initiation in the Dark Goddess Mysteries” – Jane Meredith

“The Witch’s Book of Shadows” – Phyllis Curott

“Inanna: Queen of Heaven and Earth” – Diane Wolkstein e Samuel Noah Kramer

“Myths from Mesopotamia” – Stephanie Dalley (Oxford University Press)

“Liber Falxifer” – N.A-A.218 (uso avançado)

“Walking the Twilight Path” – Michelle Belanger

“Women Who Run With the Wolves” – Clarissa Pinkola Estés

“Witch: Unleashed. Untamed. Unapologetic.” – Lisa Lister



"Ereshkigal, Senhora do Silêncio e da Sombra,

Acolhe minha dor no ventre da Terra.

No abismo, eu renasço.

Na escuridão, me curo.

Na morte, me transformo.

Ereshkigal, envolve-me em teu útero de obsidiana,

Liberta-me da dor que já não serve.

Faz de mim cinza fértil.

Faz de mim nova carne.

Que tua noite seja meu renascimento."

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